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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

A simbologia de "O Mostrengo" nas nossas próprias vidas!


Gravura publicada pela Revista "O Occidente" de 21 de Julho de 1886



IV - O Mostrengo


O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
A roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»
E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»

Fernando Pessoa
in, "Mensagem"



A "Mensagem" é um livro profundamente pensado tendo ocupado a mente do Poeta entre 1913 e 1934 quando foi publicado - um ano antes da sua morte - constituindo um texto poético onde subjaz de um modo mais fulgurante a matriz épica da epopeia heróica que perpassa em toda a obra que insere na sua segunda parte este "Mostrengo" medonho que se dizia haver no encontro das águas do Atlântico com as do Índico e com o qual Bartolomeu Dias trocou o célebre diálogo que a arte poética de Fernando Pessoa arquitectou - próprio de dois gigantes - o da lenda que morava na escarpa do Bojador e que ousadamente, naquela noite de breu se pôs a girar à volta na nau comandante a impor os seus direitos quanto à liberdade de passagem e o daquele marinheiro destemido que lhe lembrava que ali ao leme ia ele, mas tendo por detrás a vontade do rei D. João Segundo, rei de um povo heróico que pretendia conquistar o mar que havia para além do Cabo das Tormentas, de pouco se importando que o "Mostrengo" se reclamasse seu dono.



"Mostrengos" semelhantes a este encontram-se na vida aqui e acolá, pelo que a simbologia deste episódio marítimo não raro a encontramos no desenrolar da vida, onde a coragem dos nossos avoengos - tivessem ou não sido marinheiros - nos capacitam a vencer e passar adiante de todos os "Indicos" para os quais nos queiram tolher a passagem, na certeza que "Cabos das Tormentas" existem e não podem ser as adversidades as vencedoras sobre a força da nossa vontade, porque esta no dizer de Horácio tem o condão de despertar em nós capacidades que, em circunstâncias favoráveis, teriam ficado adormecidas.

Os grandes Poetas distinguem-se por serem criadores de imagens, como esta.
Neste caso, Pessoa, criou uma imagem heróica de cariz militar, atendendo que Bartolomeu Dias ia ao serviço do rei D. João Segundo. No caso da vida de cada homem e no seu agir na sociedade civil, cabe-lhe por direito próprio ser o criador de imagens onde esteja presente a simbologia de o "Mostrengo".

Só por isto vale a pena ler e meditar neste formidável poema e fazer dele um lema de vida que nos deve acompanhar por todos os mares e caminhos do Mundo.
E assim, vencer todos os "Mostrengos" e passar adiante!


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