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terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

"Se me aparto de ti, Deus da Bondade" - Um soneto da Marquesa de Alorna




Se me Aparto de ti, 
Deus da Bondade


Se me aparto de ti, Deus da bondade,
Que ausência tão cruel! Como é possível
Que me leve a um abismo tão terrível
O pendor infeliz da humanidade!

Conforta-me, Senhor, que esta saudade
Me despedaça o coração sensível;
Se a teus olhos na cruz sou desprezível,
Não olhes para a minha iniquidade!

À suave esperança me entregaste,
E o preço de teu sangue precioso
Me afiança que não me abandonaste.

Se, justo, castigar-me te é forçoso,
lembra-te que te amei, e me criaste
para habitar contigo o Céu lustroso!


Marquesa de Alorna, in 'Antologia Poética'



A 4ª Marquesa de Alorna, D. Leonor de Almeida Portugal (1750-1839), deu entrada como prisioneira no Convento de Chelas em 1758 - onde esteve até cerca do 27 anos de idade - por ordem do Marquês de Pombal, pelo facto do pai - também encarcerado - segundo os inquiridores régios ter tido conhecimento do atentado ao rei D. José I, levado a cabo pelos Tàvoras a que acresceu, como causa, o facto dos laços de parentesco que havia entre esta família e a dos Marqueses de Alorna, o que não deixa de notável pelo pior sentido, a justiça levada a cabo, fazendo lembrar a fábula de La Fontaine "O lobo e o cordeiro" que vale a pena lembrar: 
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Um cordeiro matava a sede á beira de um regato, quando surgiu um lobo faminto. Procurando o que devorar, o lobo ao ver o bichinho, gritou-lhe irritado:
– Então, ousas a turvar a água que eu vou beber!
– perdoe-me senhor- respondeu o humilde cordeiro-, mas a água vem descendo e eu bebo aqui no declive: não poderia turvá-la.
– Turvas sim; alem disso, soube que falaste mal de mim há uns seis meses.
-Não seria possível: tenho apenas três meses de idade.
– Se não foste tu , foi teu irmão.
-Mas eu não tenho irmão, senhor.
– Então foram teus parentes (...)
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Para a justiça da época, a Marquesa de Alorna ao ter-se parecido com o cordeiro da fábula, pagou o tributo de ser filha de D. Joâo de Almeida Portugal, só tendo conhecido a liberdade em 1777, como resultado da subida ao trono de D. Maria I e o afastamento da corte do sinistro Marquês de Pombal.

Era um costume do tempo haver nos conventos os chamados "outeiros poéticos" que eram, afinal, recitais de poesia onde ela conheceu o renomeado poeta Francisco Manuel do Nascimento, de seu nome arcádico Filinto Elísio e que, por entre a grade conventual lhe avivou os seus dotes poéticos, naturalmente, condicionados à prisão injusta que sofria.

"Se me aparo de ti, Deus de Bondade" pertence à colectânea que a Marquesa de Alorna escreveu na reclusão do Convento de Chelas a que os maus ventos da História a remeteu, pelo que, o pendor infeliz da humanidade, de que nos fala não deixa de ser uma sentida queixa, como se tomasse a ´"árvore pela floresta" e visse a humanidade representada no frio Primeiro-Ministro de D. José I, a ponto de embora internada num convento, se dá a entender a existência de algum apartamento de Deus motivado pelo sofrimento que a pena injusta lhe causava, este facto não a impediu de lhe ter chamado - Deus de bondade - para depois, acentuar este título ao lembrar a injusta morte de Jesus, num terceto de forma e sentido irrepreensível:

À suave esperança me entregaste,
E o preço de teu sangue precioso
Me afiança que não me abandonaste.

A Marquesa de Alorna, viveu e sofreu - como não raro acontece com o comum dos mortais - sentimentos de recusa de Deus, mas por um mistério que está vivo enquanto a vida durar a esses momentos de algum esbatimento religioso, sucedem momentos de encontro com a divindade, porque o sangue precioso vertido na Cruz e que ela refere lhe dizia que não me abandonaste, e há-de ser sempre assim, porque enquanto vivermos e mesmo nos momentos mais difíceis a suave esperança continuará a sentir-se viva no coração de cada criatura, porque não foi em vão que Jesus verteu no Calvário o seu sangue precioso.


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