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sexta-feira, 11 de abril de 2014

Os mestres calceteiros



Foto do Arquivo Municipal da Câmara Municipal de Lisboa


Foi em tempos uma dura profissão, bem documentada na velha gravura representando um grupo de calceteiros entregues à tarefa de calçar as ruas com os paralelipípedos de granito com os quais chagaram a encher uma grande parte de Lisboa, em que a força dos braços partia, colocava e ajeitava  a pedra sobre a base de areia ou caliça, na posição incómoda - de còcoras e até de joelhos - para depois a calcarem com o peso dos grossos e pesados maços de madeira que ao fim do dia eram um motivo de cansaço, mas também de alegria pelo trabalho realizado.

Esta velha profissão - que hoje sofre o seu esbatimento por força dos  tapetes betuminosos que cobrem as ruas e avenidas não está extinta , devendo, até a arte que encerra e é um ex-libris de Lisboa, merecer a atenção dos responsáveis - mereceu na época, pela dureza do trabalho que era levado a cabo, que o Poeta Cesário Verde lhe dedicasse uma agrande parte do poema "Cristalizações", onde lemos e meditamos:


Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,
Vibra uma imensa claridade crua.
De cócoras, em linha, os calceteiros,
Com lentidão, terrosos e grosseiros,
Calçam de lado a lado a longa rua.

Como as elevações secaram do relento,
E o descoberto sol abafa e cria!
A frialdade exige o movimento;
E as poças de ar, como em chão vidrento,
Reflectem a molhada casaria.

Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita,
Disseminadas, gritam as peixeiras;
Luzem, aquecem na manhã bonita,
Uns barracões de gente pobrezita
E uns quintalórios velhos com parreiras.

Não se ouvem aves; nem o choro duma nora!
Tomam por outra parte os viandantes;
E o ferro e a pedra - que união sonora! -
Retinem alto pelo espaço fora,
Com choques rijos, ásperos, cantantes.

Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços,
Cuja coluna nunca se endireita,
Partem penedos; cruzam-se estilhaços.
Pesam enormemente os grossos maços,
Com que outros batem a calçada feita.

A sua barba agreste! A lã dos seus barretes!
Que espessos forros! Numa das regueiras
Acamam-se as japonas, os coletes;
E eles descalçam-se com os picaretes,
Que ferem lume sobre pederneiras.
.................................................................................................

Bom observador desta e outras profissões citadinas, o Poeta começa pelo relato da posição em que os calceteiros trabalhavam - de cócoras e alinhados - sem deixar de referir a lentidão do trabalho motivada pelo acasalamento das pedras.
Ao dar-lhes o apodo de terrosos, pela sujidade do trabalho, quis Cesário dizer que os calceteiros se confundiam com o solo.
Mas não se pense que o termo grosseiros era um acinte ou um precipitado julgamento do operário que ele imortalizou com a sua poesia - algo que Cesário nunca faria - mas, antes, porque, o aspecto espelhava a rudeza do trabalho que as suas mãos reflectiam à saciedade deixando ver a marca do esforço e, até, quantas vezes o desalinhamento dos ossos.

Maravilhosas mãos grosseiras que atapetaram as ruas da cidade!

Cesário que foi um observado atento e dedicado ao cantar os rapagões calceteiros deixou deles um retrato fiel, que pela beleza da forma e da autenticidade, repetimos, para que ao relembrá-lo, meditemos nestes esforçados trabalhadores: 

(...) E os rapagões, morosos, duros, baços,
Cuja coluna nunca se endireita,
Partem penedos; cruzam-se estilhaços.
Pesam enormemente os grossos maços,
Com que outros batem a calçada feita.

Grande homenagem ao calceteiro fez Cesário Verde, cuja coluna nunca se endireita!
Muito pequena é a minha homenagem. 
Mas fica feita.

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