(…) Quanto à Igreja, a sua acção jamais faltará por qualquer modo, e
será tanto mais fecunda, quanto mais livremente se possa desenvolver.
Nós desejamos que compreendam isto sobretudo aqueles cuja missão é velar pelo bem público. Empreguem neste
ponto os Ministros do Santuário toda a energia da sua alma e generosidade do
seu zelo, e guiados pela vossa autoridade e pelo vosso exemplo, Veneráveis
Irmãos, não se cansem de inculcar a todas as classes da sociedade as máximas do
Evangelho; façamos tudo quanto estiver ao nosso alcance para salvação dos
povos, e, sobretudo, alimentem em si e acendam nos outros, nos grandes e nos
pequenos a caridade, senhora e rainha de
todas as virtudes. Portanto, a salvação desejada deve ser principalmente o
fruto duma grande efusão de caridade, queremos dizer, daquela caridade que compendia em si todo o Evangelho, e que, sempre
pronta a sacrificar-se pelo próximo, é o antídoto mais seguro contra o orgulho
e o egoísmo do século. Desta virtude, descreveu S. Paulo as feições
características com as seguintes palavras: “A
caridade é paciente, é benigna, não cuida do seu interesse; tudo sofre; a tudo
se resigna” (nº
35 da Carta Encíclica “Rerum Novarum”) Nota: os sublinhados são nossos.
Comentário: Camilo
Castelo Branco escreveu, possivelmente, num dos raros intervalos da sua
atribulada vida o livro “Horas de Paz - escritos religiosos”, dedicando o cap.
V ao tema da caridade, onde afirma: Esta virtude, considerada o amor a Deus e
o amor do próximo, é a mais excelente de todas as virtudes (…) a esperança
cessará quando os prazeres esperados se converterem na dulcíssima realidade das
delícias celestes; mas a “caridade
subsistirá eternamente” como diz S. Paulo (1ª Cor. 13, 8), por ser senhora e rainha de todas as virtudes, como,
mais tarde, acentuaria o Papa Leão XIII, o que nos leva a concluir que a
salvação prometida por Deus a todos os homens tem de ter como base primeira e
fundamental a assunção da caridade que
compendia em si todo o Evangelho, ou seja, amar a Deus na linha do
profetismo do AT e, de um modo especial, seguir a pregação de Jesus e dos seus Apóstolos.
A virtude da caridade representa a
acção altruísta de fazer o bem sem esperar recompensa, como a Palavra defende: Quando
derdes esmola, não saiba a vossa mão esquerda o que faz a vossa mão direita
(Mt 6, 3), donde deriva ser a caridade a essência do cristianismo, algo que levou S. Paulo a menorizar todas
as suas obras se nelas não entrasse como perfume de Deus a caridade, porque não estando vivificado por ela sentia-se arredado
do caminho do céu.
Eis, porque, sendo isto tão óbvio,
espanta que entre o tempo de Moisés, quando é dito: Amarás, pois, ao Senhor teu Deus
de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças (Dt
6,5) e o tempo actual, Deus continue a exortar o homem quanto à assunção do
vínculo maior - a caridade - onde o amor que lhe é devido se tem de tornar
infinito, pois só assim é possível modificar a natureza do homem, razão porque
a recomendação de Moisés vem de muito longe e continua actual, pois só a partir
de Deus é que se pode amar, verdadeiramente, o próximo, na linha da caridade a
que todos fomos chamados e ressoou, um dia, no antigo grito dos pagãos: “vede como eles se amam” testemunhado
por Tertuliano (160-220 d. C).
Este é, certamente, o primeiro e
grande paradigma da caridade entre os homens no ágape da repartição fraterna,
hoje, um sentimento difuso, onde o homem reduzido a um número passou a ser um
ente solitário entre muitos, quando o ideal cristão o torna necessitado um do
outro, centrando-se aqui o testemunho que cabe dar à valorização humana do
próximo.
Temos assim, que no desfiar dos
séculos tem sido o sentimento da
caridade o fiel inspirador de tudo
aquilo que nos ata a Deus e tem de ser, a partir desse feixe de amor sublime, a
relação com o nosso semelhante, partindo dessa íntima comunhão da Humanidade
aos pés do Criador, a fazer-se da caridade - que no dizer de S. Paulo não cuida do seu interesse - algo que nos deve inquietar, porque a massificação
do tempo que passa ao isolar o homem tende a desviá-lo da caridade que é devida
ao seu semelhante.
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