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quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Vaidades...

A vaidade fora do controlo é uma aberração comportamental que tarde ou cedo apresenta a sua conta para ser paga, bem ao contrário do orgulho que se pode sentir e que vai buscar ao nosso amor-próprio a sua identidade, bem ao contrário da vaidade que procura fora de nós a aura e a fama que nem sempre é merecida.

Leiamos de Jane Austen este sábio pensamento:

A vaidade e o orgulho são coisas diferentes, embora as palavras sejam frequentemente usadas como sinónimos. Uma pessoa pode ser orgulhosa sem ser vaidosa. O orgulho relaciona-se mais com a opinião que temos de nós mesmos, e a vaidade, com o que desejaríamos que os outros pensassem de nós.

Tudo isto radica no facto de hoje, no acervo das coisas que guardo a este propósito, os meus olhos e a minha atenção terem caído sobre o "Apólogo de um lírio vaidoso", que pode fazer luz sobre este pequeno intróito.



Apólogo de um lírio vaidoso

A meia encosta dum cerro, aberto contra o meio-dia, poisava um horto de verduras a que as sebes de madressilva teciam luzido gorja de flores.

E na clareira de mais sol que o jardim fendia, alçava o fuste elegante, o lírio mais formoso que os olhos namorados viram. Alvo, alvo como a pedra alveira do moinho, como a polpa macia do nabo, como os alvos braços de branca e sardenta moçoila, a haste esbelta, a corola, beijo de neve e atar, encurvava-se gracilmente sobre o tronco, tal se andasse ao rebusco de um espelho para narcisar-se.
Sorvia o sol todo o suco da serra., ressicando a própria grama daninha, mas ao vingar a manhã e ao partir-se o dia, o dono do horto de bojudo regador em punho, com chorros de água empapava o canteiro em que frondejava o lírio.

Das quatro quinas do outeiro desabelhavam rondões de insectos para verem o lírio famoso, um és-não-és pendente de graça como as formosas que o colo torcem, ou para sugar uma gota de água que o borrifador do patrão lhes houvera abandonado no cálice.

As maltas voejavam os zangãos vadios, as abelhas proletárias, as vespas de bravia inutilidade, e pintalgados bandos.de borboletas e filas negras de formigas como padres em procissão, e miunçalha de bicharia, até romeiros caracóis que a novidade recolheram dum rebanho de pulgões de roseira.

Orgulhava-se o lírio, firmado no esguio caule, revendo-se-nos seus primores e donaires, nas betas de luz, na alvinitência das pétalas. E na metade da hora do dia, um grilo travesso que rasgara toca entre as suas raízes, ali rolava as asas, elevando ao alto sua canção gaiata como vinho palra dador, dizendo louvaminhas com ritornelos de escárnio.

- Bem se vê que sou rei dos prados!- pensava o lírio.

Só pelo fresco da noite, das franças de um limoeiro chorava um rouxinol:
- Toda a ilusão é uma dor futura, como toda a dor uma ilusão que nos faz sofrer! Orgulhos são coisas vãs como as asas dos grilos que cantam e não voam.
E na ourela do vale, num aguaçal do magras veias, as rãs malignas desdenhavam:
-Coáche ... coách-coách ... O lírio é um parvo, quase tão parvo como o sapo. Porque lhe regam a camisa branca, ganha importância. Ora adeus! Nós trazemos fraque verde como os estetas simbolistas, e nem por isso nos empanturramos de soberbia. O lírio é um asno ! Coáche ... coách-coách ... »

- Invejas, resmungava o lírio.

Chegou a canícula. De canto a canto o céu era uma brasa viva. Ao entardecer, o suão assoprava áscuas de forja. Queimava o chão, e já o santo das fogueiras e luminárias capara o grilo.
Uma bela manhã o dono não acudiu de regador em pinho. Da cancela do quintal regougou:

- Aborrece-me aquele estupor! Sempre de cabeça á banda ...

Ao escuro, o lírio teve fome e sede. Apeteceu-lhe morar nas abas do lameiro onde as rás solfejavam motetes de ironia.
Quando a aurora riscou os fogachos de luz e calor, estava o lírio dobrado a meio, a tige mole como um tentáculo de polvo, a alvura da túnica puxando ao amarelo·bósta, o cálice entorpecido de secura.

- Foge que mete nojo! - zumbiram as abelhas e zangãos, largando em voo doido.
- Olha o espantalho! -indignaram as libélulas.
E até o caracol ancião recomendo ao companheiro novato:
- Cuidado! Não vá esse trapo sujar-nos a baba.

Mais pendente, mais actuado, o lírio que não via chegar o seu patrão, lastimava-se:

- Só quem nunca foi cão e nunca perdeu o dono, é que não pode imaginar a minha dor.

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