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terça-feira, 11 de outubro de 2016

Reflexão sobre o poema "A Escola Portuguesa" de Guerra Junqueiro


Não faço à Escola Portuguesa de hoje o anátema que Guerra Junqueiro lhe lançou no seu tempo - e com toda a razão porque o ensino ministrado às crianças que ele conheceu e tendo sido uma delas -  era uma anormalidade que só o atraso educacional de um Portugal desnaturalisado por uma Monarquia Constitucional a viver às arrecuas consegue explicar e que foi, possivelmente, uma das razões que levou este insigne Poeta a ser um dos arautos mais acirrados de uma mudança de regime, como veio a acontecer em 1910.

O que dá que pensar é que muitos dos homens que ele ainda viu a dirigir a I República - e da qual não souberam tirar o proveito do tempo novo que lhes foi dado viver - saíram desta "Escola Portuguesa" que como diz Guerra Junqueiro foram as desgraçadas toutinegras entregues ao "Ontem" - o mestre-escola - quando elas eram e assim não foram tratadas o "Amanhã", que bem mereciam ter tido o "Hoje" a ensinar, moldando o "Amanhã" que elas eram.

Li esta poesia - lindíssima e comovente na forma, mas triste no conteúdo - e fiquei a pensar que os homens - que se tornaram responsáveis públicos - e que resultaram das crianças desta célebre composição poética não podiam ter tido outro comportamento que não fora o que tiveram - por falta de bases - e, por isso, eu próprio, que nem sempre tenho tido sobre os desvarios políticos da I República um modo brando de os entender, à luz do que lemos e sentimos depois da Leitura de "A Escola Portuguesa" do Poeta de Freixo de Espada à Cinta, temos de entender aquele tempo.

Infelizmente - e isto dá que pensar - ainda hoje, há por aí, homens que se parecem com os meninos da "Escola Portuguesa" de que nos fala Guerra Junqueiro, porque tiveram por educadores resquícios do professor asinino que ele pintou neste poema. 

Sei do que falo, porque a minha idade me permite dizer, que no meu tempo infantil, na velha Escola Primária que o camartelo já demoliu - eu sofri com um ensino asinino - que só a educação do meu saudoso lar me ensinou a ultrapassar.

Eis o poema de Guerra Junqueiro, um retrato fiel da Escola do seu tempo.

A Escola Portuguesa

Eis as crianças vermelhas
Na sua hedionda prisão:
Doirado enxame de abelhas!
O mestre-escola é o zangão.

Em duros bancos de pinho
Senta-se a turba sonora
Dos corpos feitos de arminho,
Das almas feitas d'aurora.

Soletram versos e prosas
Horríveis; contudo, ao lê-las
Daquelas bocas de rosas
Saem murmúrios de estrela.

Contemplam de quando em quando,
E com inveja, Senhor!
As andorinhas passando
Do azul no livre esplendor.

Oh, que existência doirada
Lá cima, no azul, na glória,
Sem cartilhas, sem tabuada,
Sem mestre e sem palmatória!

E como os dias são longos
Nestas prisões sepulcrais!
Abrem a boca os ditongos,
E as cifras tristes dão ais!

Desgraçadas toutinegras,
Que insuportáveis martírios!
João Félix co'as unhas negras,
Mostrando as vogais aos lírios!

Como querem que despontem
Os frutos na escola aldeã,
Se o nome do mestre é — Ontem
E o do discíp'lo — Amanhã!

Como é que há-de na campina
Surgir o trigal maduro,
Se é o Passado quem ensina
O b a ba ao Futuro!

Entregar a um tarimbeiro
Um coração infantil!
Fazer o calvo Janeiro
Preceptor do loiro Abril!

Barbaridade irrisória,
Estúpido despotismo!
Meter uma palmatória
Nas mãos dum anacronismo!

A palmatória, o açoite,
A estupidez decretada!
A lei incumbindo a Noite
Da educação da Alvoradal

Gravai na vossa lembrança
E meditai com horror,
Que o homem sai da criança
Como o fruto sai da flor.

Da pequenina semente,
Que a escola régia destrói,
Pode fazer-se igualmente
Ou o assassino ou o herói.

Desta escola a uma prisão
Vai um caminho agoireiro:
A escola produz o grão
De que a enxovia é o celeiro.

Deixai ver o Sol doirado
À infância, eis o que eu vos peço.
Esta escola é um atentado,
Um roubo feito ao progresso.

Vamos, arrancai a infância
Da lama deste paul;
Rasgai no muro Ignorância
Trezentas portas de azul!

O professor asinino,
Segundo entre nós ele é,
Dum anjo extrai um cretino,
Dum cretino um chimpanzé.

Empunhando as rijas férulas
Vós esmagais e partis
As crianças — essas pérolas
Na escola — esse almofariz.

Isto escolas!... que indecência
Escolas, esta farsada!
São açougues de inocência,
São talhos d'anjos, mais nada.

Guerra Junqueiro, in 'A Musa em Férias' 

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