No sermão pregado em 1649 no Convento de S. Francisco, em Xabregas, por ocasião das exéquias de D. Maria de Ataíde, filha dos Condes de Atouguia, que a morte ceifou aos 24 anos de idade, o Padre António Vieira ergueu com o seu verbo culto e acertivo entre muitas outras as considerações que lhe mereceu a morte daquela dama palaciana, as seguintes, que são na sua aparente frieza de análise, um modo como devemos encarar a foice com que a morte é representada.
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Queixa-se a idade contra a morte. Se se queixam os oitenta anos de Davi, se se queixam os cento e quarenta e sete anos de Jacó, se se queixam os duzentos e setenta anos de Jó, como se não hão de queixar os vinte e quatro anos de D. Maria de Ataíde?(...)
Apareceu uma vez a morte ao
profeta Hábacuc, e viu que ia andando no triunfo de Cristo: Ante faciem ejus ibit mors (13). Apareceu outra vez a morte a S. João no
Apocalipse, e viu que vinha pisando sobre um cavalo: Et ecce equns, et qui sedebat super eum,
nomen illi Mors (14). Apareceu terceira vez a morte ao profeta Zacarias, e
viu uma foice com asas: Vidi, et ecce
falx volans (15). De maneira que temos a morte a pé, morte a cavalo, e morte
com asas.
A vida sempre caminha ao mesmo passo,
porque segue o curso do tempo: a morte nenhuma ordem guarda no caminhar, nem
ainda no ser. Umas vezes é uma anatomia de ossos que anda, outras um cavaleiro
que corre, outras uma foice que voa. Para estes vem andando, para aqueles
correndo, para os outros voando.
Se a morte, ou para todos andara,
ou para todos correra, ou para todos voara, era igual a morte. Mas andar para
uns, para outros correr, e para mim voar? Oh! morte, quem te cortara as asas.
Mas bem é que bata as asas, para que nós abatamos as rodas. Pinta-se a morte
com uma foice segadora na mão direita, e um relógio com asas na mão esquerda.
Se alguma hora foi assim a morte, troque-se daqui por diante a pintura, que já
não é assim. Ecce falx volans.
Tirou a morte as asas do relógio
da mão esquerda, e passou-as à foice da mão direita, porque é mais apressada a
foice da morte em cortar que o relógio da vida em correr. Ainda quando a morte
não voa, corre mais que a vida.
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(13) A morte irá diante da sua face (Háb 3, 5).
(14) E apareceu um cavalo, e o que estava montado sobre ele
tinha por nome Morte (Apc 6, 8)
(15) A Vulgata traz volumen, livro e não falx, foice: E eis
que vi um livro que voava (Zac 5, 1).
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