Está aberta a Porta Santa na Basílica de São Pedro, em Roma.
Poucos minutos depois das 10h00, Francisco transpôs a porta seguido do seu
antecessor Bento XVI e depois cardeais, bispos e representantes de sacerdotes,
religiosos, religiosas e leigos.
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Misericordiae Vultus
BULA DE PROCLAMAÇÃO
DO JUBILEU
EXTRAORDINÁRIO DA MISERICÓRDIA
FRANCISCO
BISPO DE ROMA
SERVO DOS SERVOS DE
DEUS
A QUANTOS LEREM ESTA
CARTA
GRAÇA, MISERICÓRDIA E
PAZ
Jesus Cristo é o rosto da
misericórdia do Pai. O mistério da fé cristã parece encontrar nestas palavras a
sua síntese. Tal misericórdia tornou-se viva, visível e atingiu o seu clímax em
Jesus de Nazaré. O Pai, « rico em misericórdia » (Ef 2, 4), depois de ter
revelado o seu nome a Moisés como « Deus misericordioso e clemente, vagaroso na
ira, cheio de bondade e fidelidade » (Ex 34, 6), não cessou de dar a conhecer,
de vários modos e em muitos momentos da história, a sua natureza divina. Na
« plenitude do tempo » (Gl 4, 4), quando tudo estava pronto segundo o seu plano
de salvação, mandou o seu Filho, nascido da Virgem Maria, para nos revelar, de
modo definitivo, o seu amor. Quem O vê, vê o Pai (cf. Jo 14, 9). Com a sua
palavra, os seus gestos e toda a sua pessoa,[1] Jesus de Nazaré revela a
misericórdia de Deus.
Precisamos sempre de contemplar o
mistério da misericórdia. É fonte de alegria, serenidade e paz. É condição da
nossa salvação. Misericórdia: é a palavra que revela o mistério da Santíssima
Trindade. Misericórdia: é o acto último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso
encontro. Misericórdia: é a lei fundamental que mora no coração de cada pessoa,
quando vê com olhos sinceros o irmão que encontra no caminho da vida.
Misericórdia: é o caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à
esperança de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado.
Há momentos em que somos
chamados, de maneira ainda mais intensa, a fixar o olhar na misericórdia, para
nos tornarmos nós mesmos sinal eficaz do agir do Pai. Foi por isso que
proclamei um Jubileu Extraordinário da Misericórdia como tempo favorável para a
Igreja, a fim de se tornar mais forte e eficaz o testemunho dos crentes.
O Ano Santo abrir-se-á no dia 8
de Dezembro de 2015, solenidade da Imaculada Conceição. Esta festa litúrgica
indica o modo de agir de Deus desde os primórdios da nossa história. Depois do
pecado de Adão e Eva, Deus não quis deixar a humanidade sozinha e à mercê do
mal. Por isso, pensou e quis Maria santa e imaculada no amor (cf. Ef 1, 4),
para que Se tornasse a Mãe do Redentor do homem. Perante a gravidade do pecado,
Deus responde com a plenitude do perdão. A misericórdia será sempre maior do
que qualquer pecado, e ninguém pode colocar um limite ao amor de Deus que perdoa.
Na festa da Imaculada Conceição, terei a alegria de abrir a Porta Santa. Será
então uma Porta da Misericórdia, onde qualquer pessoa que entre poderá
experimentar o amor de Deus que consola, perdoa e dá esperança.
No domingo seguinte, o Terceiro
Domingo de Advento, abrir-se-á a Porta Santa na Catedral de Roma, a Basílica de
São João de Latrão. E em seguida será aberta a Porta Santa nas outras Basílicas
Papais. Estabeleço que no mesmo domingo, em cada Igreja particular – na
Catedral, que é a Igreja-Mãe para todos os fiéis, ou na Concatedral ou então
numa Igreja de significado especial – se abra igualmente, durante todo o Ano
Santo, uma Porta da Misericórdia. Por opção do Ordinário, a mesma poderá ser
aberta também nos Santuários, meta de muitos peregrinos que frequentemente,
nestes lugares sagrados, se sentem tocados no coração pela graça e encontram o
caminho da conversão. Assim, cada Igreja particular estará directamente
envolvida na vivência deste Ano Santo como um momento extraordinário de graça e
renovação espiritual. Portanto o Jubileu será celebrado, quer em Roma quer nas
Igrejas particulares, como sinal visível da comunhão da Igreja inteira.
Escolhi a data de 8 de Dezembro,
porque é cheia de significado na história recente da Igreja. Com efeito, abrirei
a Porta Santa no cinquentenário da conclusão do Concílio Ecuménico Vaticano II.
A Igreja sente a necessidade de manter vivo aquele acontecimento. Começava
então, para ela, um percurso novo da sua história. Os Padres, reunidos no
Concílio, tinham sentido forte, como um verdadeiro sopro do Espírito, a
exigência de falar de Deus aos homens do seu tempo de modo mais compreensível.
Derrubadas as muralhas que, por demasiado tempo, tinham encerrado a Igreja numa
cidadela privilegiada, chegara o tempo de anunciar o Evangelho de maneira nova.
Uma nova etapa na evangelização de sempre. Um novo compromisso para todos os
cristãos de testemunharem, com mais entusiasmo e convicção, a sua fé. A Igreja
sentia a responsabilidade de ser, no mundo, o sinal vivo do amor do Pai.
Voltam à mente aquelas palavras,
cheias de significado, que São João XXIII pronunciou na abertura do Concílio
para indicar a senda a seguir: « Nos nossos dias, a Esposa de Cristo prefere
usar mais o remédio da misericórdia que o da severidade. (…) A Igreja Católica,
levantando por meio deste Concílio Ecuménico o facho da verdade religiosa,
deseja mostrar-se mãe amorosa de todos, benigna, paciente, cheia de
misericórdia e bondade com os filhos dela separados ».[2] E, no mesmo
horizonte, havia de colocar-se o Beato Paulo VI, que assim falou na conclusão
do Concílio: « Desejamos notar que a religião do nosso Concílio foi, antes de
mais, a caridade. (...) Aquela antiga história do bom samaritano foi exemplo e
norma segundo os quais se orientou o nosso Concílio. (…) Uma corrente de
interesse e admiração saiu do Concílio sobre o mundo actual. Rejeitaram-se os
erros, como a própria caridade e verdade exigiam, mas os homens, salvaguardado
sempre o preceito do respeito e do amor, foram apenas advertidos do erro. Assim
se fez, para que, em vez de diagnósticos desalentadores, se dessem remédios
cheios de esperança; para que o Concílio falasse ao mundo actual não com
presságios funestos mas com mensagens de esperança e palavras de confiança. Não
só respeitou mas também honrou os valores humanos, apoiou todas as suas
iniciativas e, depois de os purificar, aprovou todos os seus esforços. (…) Uma
outra coisa, julgamos digna de consideração. Toda esta riqueza doutrinal
orienta-se apenas a isto: servir o homem, em todas as circunstâncias da sua
vida, em todas as suas fraquezas, em todas as suas necessidades ».[3]
Com estes sentimentos de gratidão
pelo que a Igreja recebeu e de responsabilidade quanto à tarefa que nos espera,
atravessaremos a Porta Santa com plena confiança de ser acompanhados pela força
do Senhor Ressuscitado, que continua a sustentar a nossa peregrinação. O
Espírito Santo, que conduz os passos dos crentes de forma a cooperarem para a
obra de salvação realizada por Cristo, seja guia e apoio do povo de Deus a fim
de o ajudar a contemplar o rosto da misericórdia.[4]
O Ano Jubilar terminará na
solenidade litúrgica de Jesus Cristo, Rei do Universo, 20 de Novembro de 2016.
Naquele dia, ao fechar a Porta Santa, animar-nos-ão, antes de tudo, sentimentos
de gratidão e agradecimento à Santíssima Trindade por nos ter concedido este
tempo extraordinário de graça. Confiaremos a vida da Igreja, a humanidade
inteira e o universo imenso à Realeza de Cristo, para que derrame a sua
misericórdia, como o orvalho da manhã, para a construção duma história fecunda
com o compromisso de todos no futuro próximo. Quanto desejo que os anos futuros
sejam permeados de misericórdia para ir ao encontro de todas as pessoas
levando-lhes a bondade e a ternura de Deus! A todos, crentes e afastados, possa
chegar o bálsamo da misericórdia como sinal do Reino de Deus já presente no
meio de nós.
« É próprio de Deus usar de
misericórdia e, nisto, se manifesta de modo especial a sua omnipotência ».[5]
Estas palavras de São Tomás de Aquino mostram como a misericórdia divina não
seja, de modo algum, um sinal de fraqueza, mas antes a qualidade da
omnipotência de Deus. É por isso que a liturgia, numa das suas colectas mais
antigas, convida a rezar assim: « Senhor, que dais a maior prova do vosso poder
quando perdoais e Vos compadeceis… »[6] Deus permanecerá para sempre na
história da humanidade como Aquele que está presente, Aquele que é próximo,
providente, santo e misericordioso.
« Paciente e misericordioso » é o
binómio que aparece, frequentemente, no Antigo Testamento para descrever a
natureza de Deus. O facto de Ele ser misericordioso encontra um reflexo
concreto em muitas acções da história da salvação, onde a sua bondade prevalece
sobre o castigo e a destruição. Os Salmos, em particular, fazem sobressair esta
grandeza do agir divino: « É Ele quem perdoa as tuas culpas e cura todas as
tuas enfermidades. É Ele quem resgata a tua vida do túmulo e te enche de graça
e ternura » (103/102, 3-4). E outro Salmo atesta, de forma ainda mais
explícita, os sinais concretos da misericórdia: « O Senhor liberta os prisioneiros.
O Senhor dá vista aos cegos, o Senhor levanta os abatidos, o Senhor ama o homem
justo. O Senhor protege os que vivem em terra estranha e ampara o órfão e a
viúva, mas entrava o caminho aos pecadores » (146/145, 7-9). E, para terminar,
aqui estão outras expressões do Salmista: « [O Senhor] cura os de coração
atribulado e trata-lhes as feridas. (...) O Senhor ampara os humildes, mas
abate os malfeitores até ao chão » (147/146, 3.6). Em suma, a misericórdia de
Deus não é uma ideia abstracta mas uma realidade concreta, pela qual Ele revela
o seu amor como o de um pai e de uma mãe que se comovem pelo próprio filho até
ao mais íntimo das suas vísceras. É verdadeiramente caso para dizer que se
trata de um amor « visceral ». Provém do íntimo como um sentimento profundo,
natural, feito de ternura e compaixão, de indulgência e perdão.
« Eterna é a sua misericórdia »:
tal é o refrão que aparece em cada versículo do Salmo 136, ao mesmo tempo que
se narra a história da revelação de Deus. Em virtude da misericórdia, todos os
acontecimentos do Antigo Testamento aparecem cheios dum valor salvífico
profundo. A misericórdia torna a história de Deus com Israel uma história da
salvação. O facto de repetir continuamente « eterna é a sua misericórdia »,
como faz o Salmo, parece querer romper o círculo do espaço e do tempo para
inserir tudo no mistério eterno do amor. É como se se quisesse dizer que o
homem, não só na história mas também pela eternidade, estará sempre sob o olhar
misericordioso do Pai. Não é por acaso que o povo de Israel tenha querido
inserir este Salmo – o « grande hallel », como lhe chamam – nas festas
litúrgicas mais importantes.
Antes da Paixão, Jesus rezou ao
Pai com este Salmo da misericórdia. Assim o atesta o evangelista Mateus quando
afirma que « depois de cantarem os salmos » (26, 30), Jesus e os discípulos
saíram para o Monte das Oliveiras. Enquanto instituía a Eucaristia, como
memorial perpétuo d’Ele e da sua Páscoa, Jesus colocava simbolicamente este
acto supremo da Revelação sob a luz da misericórdia. No mesmo horizonte da
misericórdia, viveu Ele a sua paixão e morte, ciente do grande mistério de amor
que se realizaria na cruz. O facto de saber que o próprio Jesus rezou com este
Salmo torna-o, para nós cristãos, ainda mais importante e compromete-nos a
assumir o refrão na nossa oração de louvor diária: « eterna é a sua
misericórdia ».
Com o olhar fixo em Jesus e no
seu rosto misericordioso, podemos individuar o amor da Santíssima Trindade. A
missão, que Jesus recebeu do Pai, foi a de revelar o mistério do amor divino na
sua plenitude. « Deus é amor » (1 Jo 4, 8.16): afirma-o, pela primeira e única
vez em toda a Escritura, o evangelista João. Agora este amor tornou-se visível
e palpável em toda a vida de Jesus. A sua pessoa não é senão amor, um amor que
se dá gratuitamente. O seu relacionamento com as pessoas, que se abeiram d’Ele,
manifesta algo de único e irrepetível. Os sinais que realiza, sobretudo para
com os pecadores, as pessoas pobres, marginalizadas, doentes e atribuladas,
decorrem sob o signo da misericórdia. Tudo n’Ele fala de misericórdia. N’Ele,
nada há que seja desprovido de compaixão.
Vendo que a multidão de pessoas
que O seguia estava cansada e abatida, Jesus sentiu, no fundo do coração, uma
intensa compaixão por elas (cf. Mt 9, 36). Em virtude deste amor compassivo,
curou os doentes que Lhe foram apresentados (cf. Mt 14, 14) e, com poucos pães
e peixes, saciou grandes multidões (cf. Mt 15, 37). Em todas as circunstâncias,
o que movia Jesus era apenas a misericórdia, com a qual lia no coração dos seus
interlocutores e dava resposta às necessidades mais autênticas que tinham.
Quando encontrou a viúva de Naim que levava o seu único filho a sepultar,
sentiu grande compaixão pela dor imensa daquela mãe em lágrimas e entregou-lhe
de novo o filho, ressuscitando-o da morte (cf. Lc 7, 15). Depois de ter
libertado o endemoninhado de Gerasa, confia-lhe esta missão: « Conta tudo o que
o Senhor fez por ti e como teve misericórdia de ti » (Mc 5, 19). A própria
vocação de Mateus se insere no horizonte da misericórdia. Ao passar diante do
posto de cobrança dos impostos, os olhos de Jesus fixaram-se nos de Mateus. Era
um olhar cheio de misericórdia que perdoava os pecados daquele homem e,
vencendo as resistências dos outros discípulos, escolheu-o, a ele pecador e
publicano, para se tornar um dos Doze. São Beda o Venerável, ao comentar esta
cena do Evangelho, escreveu que Jesus olhou Mateus com amor misericordioso e
escolheu-o: miserando atque eligendo.[7] Sempre me causou impressão esta frase,
a ponto de a tomar para meu lema.
Nas parábolas dedicadas à
misericórdia, Jesus revela a natureza de Deus como a dum Pai que nunca se dá
por vencido enquanto não tiver dissolvido o pecado e superada a recusa com a
compaixão e a misericórdia. Conhecemos estas parábolas, três em especial: as da
ovelha extraviada e da moeda perdida, e a do pai com os seus dois filhos (cf.
Lc 15, 1-32). Nestas parábolas, Deus é apresentado sempre cheio de alegria,
sobretudo quando perdoa. Nelas, encontramos o núcleo do Evangelho e da nossa
fé, porque a misericórdia é apresentada como a força que tudo vence, enche o
coração de amor e consola com o perdão.
Temos depois outra parábola da
qual tiramos uma lição para o nosso estilo de vida cristã. Interpelado pela
pergunta de Pedro sobre quantas vezes fosse necessário perdoar, Jesus
respondeu: « Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete » (Mt 18,
22) e contou a parábola do « servo sem compaixão ». Este, convidado pelo senhor
a devolver uma grande quantia, suplica-lhe de joelhos e o senhor perdoa-lhe a
dívida. Mas, imediatamente depois, encontra outro servo como ele, que lhe devia
poucos centésimos; este suplica-lhe de joelhos que tenha piedade, mas aquele
recusa-se e fá-lo meter na prisão. Então o senhor, tendo sabido do facto, zanga-se
muito e, convocando aquele servo, diz-lhe: « Não devias também ter piedade do
teu companheiro, como eu tive de ti? » (Mt 18, 33). E Jesus concluiu: « Assim
procederá convosco meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar ao seu irmão
do íntimo do coração » (Mt 18, 35).
A parábola contém um ensinamento
profundo para cada um de nós. Jesus declara que a misericórdia não é apenas o
agir do Pai, mas torna-se o critério para individuar quem são os seus
verdadeiros filhos. Em suma, somos chamados a viver de misericórdia, porque,
primeiro, foi usada misericórdia para connosco. O perdão das ofensas torna-se a
expressão mais evidente do amor misericordioso e, para nós cristãos, é um
imperativo de que não podemos prescindir. Tantas vezes, como parece difícil perdoar!
E, no entanto, o perdão é o instrumento colocado nas nossas frágeis mãos para
alcançar a serenidade do coração. Deixar de lado o ressentimento, a raiva, a
violência e a vingança são condições necessárias para se viver feliz.
Acolhamos, pois, a exortação do Apóstolo: « Que o sol não se ponha sobre o
vosso ressentimento » (Ef 4, 26). E sobretudo escutemos a palavra de Jesus que
colocou a misericórdia como um ideal de vida e como critério de credibilidade
para a nossa fé: « Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia »
(Mt 5, 7) é a bem-aventurança a que devemos inspirar-nos, com particular
empenho, neste Ano Santo.
Na Sagrada Escritura, como se vê,
a misericórdia é a palavra-chave para indicar o agir de Deus para connosco. Ele
não Se limita a afirmar o seu amor, mas torna-o visível e palpável. Aliás, o
amor nunca poderia ser uma palavra abstracta. Por sua própria natureza, é vida
concreta: intenções, atitudes, comportamentos que se verificam na actividade de
todos os dias. A misericórdia de Deus é a sua responsabilidade por nós. Ele
sente-Se responsável, isto é, deseja o nosso bem e quer ver-nos felizes, cheios
de alegria e serenos. E, em sintonia com isto, se deve orientar o amor
misericordioso dos cristãos. Tal como ama o Pai, assim também amam os filhos.
Tal como Ele é misericordioso, assim somos chamados também nós a ser
misericordiosos uns para com os outros.
A arquitrave que suporta a vida
da Igreja é a misericórdia. Toda a sua acção pastoral deveria estar envolvida
pela ternura com que se dirige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece
ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia. A credibilidade da Igreja
passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo. A Igreja « vive um
desejo inexaurível de oferecer misericórdia ».[8] Talvez, demasiado tempo, nos
tenhamos esquecido de apontar e viver o caminho da misericórdia. Por um lado,
atentação de pretender sempre e só a justiça fez esquecer que esta é apenas o
primeiro passo, necessário e indispensável, mas a Igreja precisa de ir mais
além a fim de alcançar uma meta mais alta e significativa. Por outro lado, é
triste ver como a experiência do perdão na nossa cultura vai rareando cada vez
mais. Em certos momentos, até a própria palavra parece desaparecer. Todavia,
sem o testemunho do perdão, resta apenas uma vida infecunda e estéril, como se
se vivesse num deserto desolador. Chegou de novo, para a Igreja, o tempo de
assumir o anúncio jubiloso do perdão. É o tempo de regresso ao essencial, para
cuidar das fraquezas e dificuldades dos nossos irmãos. O perdão é uma força que
ressuscita para nova vida e infunde a coragem para olhar o futuro com
esperança.
Não podemos esquecer o grande
ensinamento que ofereceu São João Paulo II com a sua segunda encíclica, a Dives
in misericordia, que então surgiu inesperada suscitando a surpresa de muitos
pelo tema que era abordado. Desejo recordar especialmente dois trechos. No
primeiro deles, o Santo Papa assinalava o esquecimento em que caíra o tema da
misericórdia na cultura dos nossos dias: « A mentalidade contemporânea, talvez
mais que a do homem do passado, parece opor-se ao Deus de misericórdia e, além
disso, tende a separar da vida e a tirar do coração humano a própria ideia da
misericórdia. A palavra e o conceito de misericórdia parecem causar mal-estar
ao homem, o qual, graças ao enorme desenvolvimento da ciência e da técnica
nunca antes verificado na história, se tornou senhor da terra, a subjugou e a
dominou (cf. Gn 1, 28). Um tal domínio sobre a terra, entendido por vezes
unilateral e superficialmente, parece não deixar espaço para a misericórdia.
(...) Por esse motivo, na hodierna situação da Igreja e do mundo, muitos homens
e muitos ambientes guiados por um vivo sentido de fé, voltam-se quase
espontaneamente, por assim dizer, para a misericórdia de Deus ».[9]
Além disso, São João Paulo II
motivava assim a urgência de anunciar e testemunhar a misericórdia no mundo
contemporâneo: « Ela é ditada pelo amor para com o homem, para com tudo o que é
humano e que, segundo a intuição de grande parte dos contemporâneos, está
ameaçado por um perigo imenso. O próprio mistério de Cristo (...) obriga-me
igualmente a proclamar a misericórdia como amor misericordioso de Deus,
revelada também no mistério de Cristo. Ele me impele ainda a apelar para esta
misericórdia e a implorá-la nesta fase difícil e crítica da história da Igreja
e do mundo ».[10] Tal ensinamento é hoje mais actual do que nunca e merece ser
retomado neste Ano Santo. Acolhamos novamente as suas palavras: « A Igreja vive
uma vida autêntica quando professa e proclama a misericórdia, o mais admirável
atributo do Criador e do Redentor, e quando aproxima os homens das fontes da
misericórdia do Salvador, das quais ela é depositária e dispensadora ».[11]
A Igreja tem a missão de anunciar
a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que por meio dela deve
chegar ao coração e à mente de cada pessoa. A Esposa de Cristo assume o
comportamento do Filho de Deus, que vai ao encontro de todos sem excluir
ninguém. No nosso tempo, em que a Igreja está comprometida na nova
evangelização, o tema da misericórdia exige ser reproposto com novo entusiasmo
e uma acção pastoral renovada. É determinante para a Igreja e para a
credibilidade do seu anúncio que viva e testemunhe, ela mesma, a misericórdia.
A sua linguagem e os seus gestos, para penetrarem no coração das pessoas e
desafiá-las a encontrar novamente a estrada para regressar ao Pai, devem
irradiar misericórdia.
A primeira verdade da Igreja é o
amor de Cristo. E, deste amor que vai até ao perdão e ao dom de si mesmo, a
Igreja faz-se serva e mediadora junto dos homens. Por isso, onde a Igreja
estiver presente, aí deve ser evidente a misericórdia do Pai. Nas nossas
paróquias, nas comunidades, nas associações e nos movimentos – em suma, onde
houver cristãos –, qualquer pessoa deve poder encontrar um oásis de
misericórdia.
Queremos viver este Ano Jubilar à
luz desta palavra do Senhor: Misericordiosos como o Pai. O evangelista refere o
ensinamento de Jesus, que diz: « Sede misericordiosos, como o vosso Pai é
misericordioso » (Lc 6, 36). É um programa de vida tão empenhativo como rico de
alegria e paz. O imperativo de Jesus é dirigido a quantos ouvem a sua voz (cf.
Lc 6, 27). Portanto, para ser capazes de misericórdia, devemos primeiro pôr-nos
à escuta da Palavra de Deus. Isso significa recuperar o valor do silêncio, para
meditar a Palavra que nos é dirigida. Deste modo, é possível contemplar a
misericórdia de Deus e assumi-la como próprio estilo de vida.
A peregrinação é um sinal
peculiar no Ano Santo, enquanto ícone do caminho que cada pessoa realiza na sua
existência. A vida é uma peregrinação e o ser humano é viator, um peregrino que
percorre uma estrada até à meta anelada. Também para chegar à Porta Santa, tanto
em Roma como em cada um dos outros lugares, cada pessoa deverá fazer, segundo
as próprias forças, uma peregrinação. Esta será sinal de que a própria
misericórdia é uma meta a alcançar que exige empenho e sacrifício. Por isso, a
peregrinação há-de servir de estímulo à conversão: ao atravessar a Porta Santa,
deixar-nos-emos abraçar pela misericórdia de Deus e comprometer-nos-emos a ser
misericordiosos com os outros como o Pai o é connosco.
O Senhor Jesus indica as etapas
da peregrinação através das quais é possível atingir esta meta: « Não julgueis
e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis
perdoados. Dai e ser-vos-á dado: uma boa medida, cheia, recalcada,
transbordante será lançada no vosso regaço. A medida que usardes com os outros
será usada convosco » (Lc 6, 37-38). Ele começa por dizer para não julgar nem
condenar. Se uma pessoa não quer incorrer no juízo de Deus, não pode tornar-se
juiz do seu irmão. É que os homens, no seu juízo, limitam-se a ler a
superfície, enquanto o Pai vê o íntimo. Que grande mal fazem as palavras,
quando são movidas por sentimentos de ciúme e inveja! Falar mal do irmão, na
sua ausência, equivale a deixá-lo mal visto, a comprometer a sua reputação e
deixá-lo à mercê das murmurações. Não julgar nem condenar significa,
positivamente, saber individuar o que há de bom em cada pessoa e não permitir
que venha a sofrer pelo nosso juízo parcial e a nossa pretensão de saber tudo.
Mas isto ainda não é suficiente para se exprimir a misericórdia. Jesus pede
também para perdoar e dar. Ser instrumentos do perdão, porque primeiro o
obtivemos nós de Deus. Ser generosos para com todos, sabendo que também Deus
derrama a sua benevolência sobre nós com grande magnanimidade.
Misericordiosos como o Pai é,
pois, o « lema » do Ano Santo. Na misericórdia, temos a prova de como Deus ama.
Ele dá tudo de Si mesmo, para sempre, gratuitamente e sem pedir nada em troca.
Vem em nosso auxílio, quando O invocamos. É significativo que a oração diária
da Igreja comece com estas palavras: « Deus, vinde em nosso auxílio! Senhor,
socorrei-nos e salvai-nos » (Sal 70/69, 2). O auxílio que invocamos é já o
primeiro passo da misericórdia de Deus para connosco. Ele vem para nos salvar
da condição de fraqueza em que vivemos. E a ajuda d’Ele consiste em fazer-nos
sentir a sua presença e proximidade. Dia após dia, tocados pela sua compaixão,
podemos também nós tornar-nos compassivos para com todos.
Neste Ano Santo, poderemos fazer
a experiência de abrir o coração àqueles que vivem nas mais variadas periferias
existenciais, que muitas vezes o mundo contemporâneo cria de forma dramática.
Quantas situações de precariedade e sofrimento presentes no mundo actual!
Quantas feridas gravadas na carne de muitos que já não têm voz, porque o seu
grito foi esmorecendo e se apagou por causa da indiferença dos povos ricos.
Neste Jubileu, a Igreja sentir-se-á chamada ainda mais a cuidar destas feridas,
aliviá-las com o óleo da consolação, enfaixá-las com a misericórdia e tratá-las
com a solidariedade e a atenção devidas. Não nos deixemos cair na indiferença
que humilha, na habituação que anestesia o espírito e impede de descobrir a
novidade, no cinismo que destrói. Abramos os nossos olhos para ver as misérias
do mundo, as feridas de tantos irmãos e irmãs privados da própria dignidade e
sintamo-nos desafiados a escutar o seu grito de ajuda. As nossas mãos apertem
as suas mãos e estreitemo-los a nós para que sintam o calor da nossa presença,
da amizade e da fraternidade. Que o seu grito se torne o nosso e, juntos, possamos
romper a barreira de indiferença que frequentemente reina soberana para
esconder a hipocrisia e o egoísmo.
É meu vivo desejo que o povo
cristão reflicta, durante o Jubileu, sobre as obras de misericórdia corporal e
espiritual. Será uma maneira de acordar a nossa consciência, muitas vezes
adormecida perante o drama da pobreza, e de entrar cada vez mais no coração do
Evangelho, onde os pobres são os privilegiados da misericórdia divina. A
pregação de Jesus apresenta-nos estas obras de misericórdia, para podermos
perceber se vivemos ou não como seus discípulos. Redescubramos as obras de
misericórdia corporal: dar de comer aos famintos, dar de beber aos sedentos,
vestir os nus, acolher os peregrinos, dar assistência aos enfermos, visitar os
presos, enterrar os mortos. E não esqueçamos as obras de misericórdia
espiritual: aconselhar os indecisos, ensinar os ignorantes, admoestar os
pecadores, consolar os aflitos, perdoar as ofensas, suportar com paciência as
pessoas molestas, rezar a Deus pelos vivos e defuntos.
Não podemos escapar às palavras
do Senhor, com base nas quais seremos julgados: se demos de comer a quem tem
fome e de beber a quem tem sede; se acolhemos o estrangeiro e vestimos quem
está nu; se reservamos tempo para visitar quem está doente e preso (cf. Mt 25,
31-45). De igual modo ser-nos-á perguntado se ajudamos a tirar da dúvida, que
faz cair no medo e muitas vezes é fonte de solidão; se fomos capazes de vencer
a ignorância em que vivem milhões de pessoas, sobretudo as crianças desprovidas
da ajuda necessária para se resgatarem da pobreza; se nos detivemos junto de
quem está sozinho e aflito; se perdoamos a quem nos ofende e rejeitamos todas
as formas de ressentimento e ódio que levam à violência; se tivemos paciência,
a exemplo de Deus que é tão paciente connosco; enfim se, na oração, confiamos
ao Senhor os nossos irmãos e irmãs. Em cada um destes « mais pequeninos », está
presente o próprio Cristo. A sua carne torna-se de novo visível como corpo
martirizado, chagado, flagelado, desnutrido, em fuga ... a fim de ser
reconhecido, tocado e assistido cuidadosamente por nós. Não esqueçamos as
palavras de São João da Cruz: « Ao entardecer desta vida, examinar-nos-ão no
amor ».[12]
No Evangelho de Lucas,
encontramos outro aspecto importante para viver, com fé, o Jubileu. Conta o
evangelista que Jesus voltou a Nazaré e ao sábado, como era seu costume, entrou
na sinagoga. Chamaram-No para ler a Escritura e comentá-la. A passagem era
aquela do profeta Isaías onde está escrito: « O espírito do Senhor Deus está
sobre mim, porque o Senhor me ungiu: enviou-me para levar a boa-nova aos que
sofrem, para curar os desesperados, para anunciar a libertação aos exilados e a
liberdade aos prisioneiros; para proclamar um ano de misericórdia do Senhor »
(61,1-2). « Um ano de misericórdia »: isto é o que o Senhor anuncia e que nós
desejamos viver. Este Ano Santo traz consigo a riqueza da missão de Jesus que
ressoa nas palavras do Profeta: levar uma palavra e um gesto de consolação aos
pobres, anunciar a libertação a quantos são prisioneiros das novas escravidões
da sociedade contemporânea, devolver a vista a quem já não consegue ver porque
vive curvado sobre si mesmo, e restituir dignidade àqueles que dela se viram
privados. A pregação de Jesus torna-se novamente visível nas respostas de fé
que o testemunho dos cristãos é chamado a dar. Acompanhem-nos as palavras do
Apóstolo: « Quem pratica a misericórdia, faça-o com alegria » (Rm 12, 8).
A Quaresma deste Ano Jubilar seja
vivida mais intensamente como tempo forte para celebrar e experimentar a
misericórdia de Deus. Quantas páginas da Sagrada Escritura se podem meditar,
nas semanas da Quaresma, para redescobrir o rosto misericordioso do Pai! Com as
palavras do profeta Miqueias, podemos também nós repetir: Vós, Senhor, sois um
Deus que tira a iniquidade e perdoa o pecado, que não Se obstina na ira mas Se
compraz em usar de misericórdia. Vós, Senhor, voltareis para nós e tereis
compaixão do vosso povo. Apagareis as nossas iniquidades e lançareis ao fundo
do mar todos os nossos pecados (cf. 7, 18-19).
As páginas do profeta Isaías
poderão ser meditadas, de forma mais concreta, neste tempo de oração, jejum e
caridade. « O jejum que me agrada é este: libertar os que foram presos
injustamente, livrá-los do jugo que levam às costas, pôr em liberdade os
oprimidos, quebrar toda a espécie de opressão, repartir o teu pão com os
esfomeados, dar abrigo aos infelizes sem casa, atender e vestir os nus e não
desprezar o teu irmão. Então, a tua luz surgirá como a aurora, e as tuas
feridas não tardarão a cicatrizar-se. A tua justiça irá à tua frente, e a
glória do Senhor atrás de ti. Então invocarás o Senhor e Ele te atenderá,
pedirás auxílio e te dirá: “Aqui estou!” Se retirares da tua vida toda a
opressão, o gesto ameaçador e o falar ofensivo, se repartires o teu pão com o
faminto e matares a fome ao pobre, a tua luz brilhará na escuridão, e as tuas
trevas tornar-se-ão como o meio-dia. O Senhor te guiará constantemente, saciará
a tua alma no árido deserto, dará vigor aos teus ossos. Serás como um jardim
bem regado, como uma fonte de águas inesgotáveis » (58, 6-11).
A iniciativa « 24 horas para o
Senhor », que será celebrada na sexta-feira e no sábado anteriores ao IV
Domingo da Quaresma, deve ser incrementada nas dioceses. Há muitas pessoas – e,
em grande número, jovens – que estão a aproximar-se do sacramento da
Reconciliação e que frequentemente, nesta experiência, reencontram o caminho
para voltar ao Senhor, viver um momento de intensa oração e redescobrir o
sentido da sua vida. Com convicção, ponhamos novamente no centro o sacramento
da Reconciliação, porque permite tocar sensivelmente a grandeza da
misericórdia. Será, para cada penitente, fonte de verdadeira paz interior.
Não me cansarei jamais de
insistir com os confessores para que sejam um verdadeiro sinal da misericórdia
do Pai. Ser confessor não se improvisa. Tornamo-nos tal quando começamos, nós
mesmos, por nos fazer penitentes em busca do perdão. Nunca esqueçamos que ser
confessor significa participar da mesma missão de Jesus e ser sinal concreto da
continuidade de um amor divino que perdoa e salva. Cada um de nós recebeu o dom
do Espírito Santo para o perdão dos pecados; disto somos responsáveis. Nenhum
de nós é senhor do sacramento, mas apenas servo fiel do perdão de Deus. Cada confessor
deverá acolher os fiéis como o pai na parábola do filho pródigo: um pai que
corre ao encontro do filho, apesar de lhe ter dissipado os bens. Os confessores
são chamados a estreitar a si aquele filho arrependido que volta a casa e a
exprimir a alegria por o ter reencontrado. Não nos cansemos de ir também ao
encontro do outro filho, que ficou fora incapaz de se alegrar, para lhe
explicar que o seu juízo severo é injusto e sem sentido diante da misericórdia
do Pai que não tem limites. Não hão-de fazer perguntas impertinentes, mas como
o pai da parábola interromperão o discurso preparado pelo filho pródigo, porque
saberão individuar, no coração de cada penitente, a invocação de ajuda e o
pedido de perdão. Em suma, os confessores são chamados a ser sempre e por todo
o lado, em cada situação e apesar de tudo, o sinal do primado da misericórdia.
Na Quaresma deste Ano Santo, é
minha intenção enviar os Missionários da Misericórdia. Serão um sinal da
solicitude materna da Igreja pelo povo de Deus, para que entre em profundidade
na riqueza deste mistério tão fundamental para a fé. Serão sacerdotes a quem
darei autoridade de perdoar mesmo os pecados reservados à Sé Apostólica, para
que se torne evidente a amplitude do seu mandato. Serão sobretudo sinal vivo de
como o Pai acolhe a todos aqueles que andam à procura do seu perdão. Serão
missionários da misericórdia, porque se farão, junto de todos, artífices dum
encontro cheio de humanidade, fonte de libertação, rico de responsabilidade
para superar os obstáculos e retomar a vida nova do Baptismo. Na sua missão,
deixar-se-ão guiar pelas palavras do Apóstolo: « Deus encerrou a todos na
desobediência, para com todos usar de misericórdia » (Rm 11, 32). Na verdade
todos, sem excluir ninguém, estão chamados a acolher o apelo à misericórdia. Os
missionários vivam esta chamada, sabendo que podem fixar o olhar em Jesus,
« Sumo Sacerdote misericordioso e fiel » (Hb 2, 17).
Peço aos irmãos bispos que
convidem e acolham estes Missionários, para que sejam, antes de tudo,
pregadores convincentes da misericórdia. Organizem-se, nas dioceses, « missões
populares », de modo que estes Missionários sejam anunciadores da alegria do perdão.
Seja-lhes pedido que celebrem o sacramento da Reconciliação para o povo, para
que o tempo de graça, concedido neste Ano Jubilar, permita a tantos filhos
afastados encontrar de novo o caminho para a casa paterna. Os pastores,
especialmente durante o tempo forte da Quaresma, sejam solícitos em convidar os
fiéis a aproximar-se « do trono da graça, a fim de alcançar misericórdia e
encontrar graça » (Hb 4, 16).
Que a palavra do perdão possa
chegar a todos e a chamada para experimentar a misericórdia não deixe ninguém
indiferente. O meu convite à conversão dirige-se, com insistência ainda maior,
àquelas pessoas que estão longe da graça de Deus pela sua conduta de vida.
Penso de modo particular nos homens e mulheres que pertencem a um grupo
criminoso, seja ele qual for. Para vosso bem, peço-vos que mudeis de vida.
Peço-vo-lo em nome do Filho de Deus que, embora combatendo o pecado, nunca
rejeitou qualquer pecador. Não caiais na terrível cilada de pensar que a vida
depende do dinheiro e que, à vista dele, tudo o mais se torna desprovido de
valor e dignidade. Não passa de uma ilusão. Não levamos o dinheiro connosco
para o além. O dinheiro não nos dá a verdadeira felicidade. A violência usada
para acumular dinheiro que transuda sangue não nos torna poderosos nem imortais.
Para todos, mais cedo ou mais tarde, vem o juízo de Deus, do qual ninguém pode
escapar.
O mesmo convite chegue também às
pessoas fautoras ou cúmplices de corrupção. Esta praga putrefacta da sociedade
é um pecado grave que brada aos céus, porque mina as próprias bases da vida
pessoal e social. A corrupção impede de olhar para o futuro com esperança,
porque, com a sua prepotência e avidez, destrói os projectos dos fracos e
esmaga os mais pobres. É um mal que se esconde nos gestos diários para se estender
depois aos escândalos públicos. A corrupção é uma contumácia no pecado, que
pretende substituir Deus com a ilusão do dinheiro como forma de poder. É uma
obra das trevas, alimentada pela suspeita e a intriga. Corruptio optimi
pessima: dizia, com razão, São Gregório Magno, querendo indicar que ninguém
pode sentir-se imune desta tentação. Para a erradicar da vida pessoal e social
são necessárias prudência, vigilância, lealdade, transparência, juntamente com
a coragem da denúncia. Se não se combate abertamente, mais cedo ou mais tarde
torna-nos cúmplices e destrói-nos a vida.
Este é o momento favorável para
mudar de vida! Este é o tempo de se deixar tocar o coração. Diante do mal
cometido, mesmo crimes graves, é o momento de ouvir o pranto das pessoas inocentes
espoliadas dos bens, da dignidade, dos afectos, da própria vida. Permanecer no
caminho do mal é fonte apenas de ilusão e tristeza. A verdadeira vida é outra
coisa. Deus não se cansa de estender a mão. Está sempre disposto a ouvir, e eu
também estou, tal como os meus irmãos bispos e sacerdotes. Basta acolher o
convite à conversão e submeter-se à justiça, enquanto a Igreja oferece a
misericórdia.
Neste contexto, não será inútil
recordar a relação entre justiça e misericórdia. Não são dois aspectos em contraste
entre si, mas duas dimensões duma única realidade que se desenvolve
gradualmente até atingir o seu clímax na plenitude do amor. A justiça é um
conceito fundamental para a sociedade civil, normalmente quando se faz
referimento a uma ordem jurídica através da qual se aplica a lei. Por justiça
entende-se também que a cada um deve ser dado o que lhe é devido. Na Bíblia,
alude-se muitas vezes à justiça divina, e a Deus como juiz. Habitualmente é
entendida como a observância integral da Lei e o comportamento de todo o bom
judeu conforme aos mandamentos dados por Deus. Esta visão, porém, levou não
poucas vezes a cair no legalismo, mistificando o sentido original e
obscurecendo o valor profundo que a justiça possui. Para superar a perspectiva
legalista, seria preciso lembrar que, na Sagrada Escritura, a justiça é
concebida essencialmente como um abandonar-se confiante à vontade de Deus.
Por sua vez, Jesus fala mais
vezes da importância da fé que da observância da lei. É neste sentido que
devemos compreender as suas palavras, quando, encontrando-Se à mesa com Mateus
e outros publicanos e pecadores, disse aos fariseus que O acusavam por isso
mesmo: « Ide aprender o que significa: Prefiro a misericórdia ao sacrifício.
Porque Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores » (Mt 9, 13). Diante da
visão duma justiça como mera observância da lei, que julga dividindo as pessoas
em justos e pecadores, Jesus procura mostrar o grande dom da misericórdia que
busca os pecadores para lhes oferecer o perdão e a salvação. Compreende-se que
Jesus, por causa desta sua visão tão libertadora e fonte de renovação, tenha
sido rejeitado pelos fariseus e os doutores da lei. Estes, para ser fiéis à
lei, limitavam-se a colocar pesos sobre os ombros das pessoas, anulando porém a
misericórdia do Pai. O apelo à observância da lei não pode obstaculizar a
atenção às necessidades que afectam a dignidade das pessoas.
A propósito, é muito
significativo o apelo que Jesus faz ao texto do profeta Oseias: « Eu quero a
misericórdia e não os sacrifícios » (6, 6). Jesus afirma que, a partir de
agora, a regra de vida dos seus discípulos deverá ser aquela que prevê o
primado da misericórdia, como Ele mesmo dá testemunho partilhando a refeição
com os pecadores. A misericórdia revela-se, mais uma vez, como dimensão
fundamental da missão de Jesus. É um verdadeiro desafio posto aos seus
interlocutores, que se contentavam com o respeito formal da lei. Jesus, pelo
contrário, vai além da lei, a sua partilha da mesa com aqueles que a lei
considerava pecadores permite compreender até onde chega a sua misericórdia.
Também o apóstolo Paulo fez um
percurso semelhante. Antes de encontrar Cristo no caminho de Damasco, a sua
vida era dedicada a servir de maneira irrepreensível a justiça da lei (cf. Fl
3, 6). A conversão a Cristo levou-o a inverter a sua visão, a ponto de afirmar
na Carta aos Gálatas: « Também nós acreditámos em Cristo Jesus, para sermos
justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da lei » (2, 16). A sua
compreensão da justiça muda radicalmente: Paulo agora põe no primeiro lugar a
fé, e já não a lei. Não é a observância da lei que salva, mas a fé em Jesus
Cristo, que, pela sua morte e ressurreição, traz a salvação com a misericórdia
que justifica. A justiça de Deus torna-se agora a libertação para quantos estão
oprimidos pela escravidão do pecado e todas as suas consequências. A justiça de
Deus é o seu perdão (cf. Sl 51/50, 11-16).
A misericórdia não é contrária à
justiça, mas exprime o comportamento de Deus para com o pecador, oferecendo-lhe
uma nova possibilidade de se arrepender, converter e acreditar. A experiência
do profeta Oseias ajuda-nos, mostrando-nos a superação da justiça na linha da
misericórdia. A época em que viveu este profeta conta-se entre as mais
dramáticas da história do povo judeu. O Reino está próximo da destruição; o
povo não permaneceu fiel à aliança, afastou-se de Deus e perdeu a fé dos pais.
Segundo uma lógica humana, é justo que Deus pense em rejeitar o povo infiel:
não observou o pacto estipulado e, consequentemente, merece a devida pena, ou
seja, o exílio. Assim o atestam as palavras do profeta: « Não voltará para o
Egipto, mas a Assíria será o seu rei, porque recusaram converter-se » (Os 11,
5). E todavia, depois desta reacção que faz apelo à justiça, o profeta muda
radicalmente a sua linguagem e revela o verdadeiro rosto de Deus: « O meu
coração dá voltas dentro de mim, comovem-se as minhas entranhas. Não
desafogarei o furor da minha cólera, não voltarei a destruir Efraim; porque sou
Deus e não um homem, sou o Santo no meio de ti e não me deixo levar pela ira »
(11, 8-9). Santo Agostinho, de certo modo comentando as palavras do profeta,
diz: « É mais fácil que Deus contenha a ira do que a misericórdia ».[13] É
mesmo assim! A ira de Deus dura um instante, ao passo que a sua misericórdia é
eterna.
Se Deus Se detivesse na justiça,
deixaria de ser Deus; seria como todos os homens que clamam pelo respeito da
lei. A justiça por si só não é suficiente, e a experiência mostra que,
limitando-se a apelar para ela, corre-se o risco de a destruir. Por isso Deus,
com a misericórdia e o perdão, passa além da justiça. Isto não significa
desvalorizar a justiça ou torná-la supérflua. Antes pelo contrário! Quem erra,
deve descontar a pena; só que isto não é o fim, mas o início da conversão, porque
se experimenta a ternura do perdão. Deus não rejeita a justiça. Ele engloba-a e
supera-a num evento superior onde se experimenta o amor, que está na base duma
verdadeira justiça. Devemos prestar muita atenção àquilo que escreve Paulo,
para não cair no mesmo erro que o apóstolo censurava nos judeus seus
contemporâneos: « Por não terem reconhecido a justiça que vem de Deus e terem
procurado estabelecer a sua própria justiça, não se submeteram à justiça de
Deus. É que o fim da Lei é Cristo, para que, deste modo, a justiça seja
concedida a todo o que tem fé » (Rm 10, 3-4). Esta justiça de Deus é a
misericórdia concedida a todos como graça, em virtude da morte e ressurreição
de Jesus Cristo. Portanto a Cruz de Cristo é o juízo de Deus sobre todos nós e
sobre o mundo, porque nos oferece a certeza do amor e da vida nova.
O Jubileu inclui também o
referimento à indulgência. Esta, no Ano Santo da Misericórdia, adquire uma
relevância particular. O perdão de Deus para os nossos pecados não conhece
limites. Na morte e ressurreição de Jesus Cristo, Deus torna evidente este seu
amor que chega ao ponto de destruir o pecado dos homens. É possível deixar-se
reconciliar com Deus através do mistério pascal e da mediação da Igreja. Por
isso, Deus está sempre disponível para o perdão, não Se cansando de o oferecer
de maneira sempre nova e inesperada. No entanto todos nós fazemos experiência
do pecado. Sabemos que somos chamados à perfeição (cf. Mt 5, 48), mas sentimos
fortemente o peso do pecado. Ao mesmo tempo que notamos o poder da graça que
nos transforma, experimentamos também a força do pecado que nos condiciona.
Apesar do perdão, carregamos na nossa vida as contradições que são consequência
dos nossos pecados. No sacramento da Reconciliação, Deus perdoa os pecados, que
são verdadeiramente apagados; mas o cunho negativo que os pecados deixaram nos
nossos comportamentos e pensamentos permanece. A misericórdia de Deus, porém, é
mais forte também do que isso. Ela torna-se indulgência do Pai que, através da
Esposa de Cristo, alcança o pecador perdoado e liberta-o de qualquer resíduo
das consequências do pecado, habilitando-o a agir com caridade, a crescer no
amor em vez de recair no pecado.
A Igreja vive a comunhão dos
Santos. Na Eucaristia, esta comunhão, que é dom de Deus, realiza-se como união
espiritual que nos une, a nós crentes, com os Santos e Beatos cujo número é
incalculável (Ap 7, 4). A sua santidade vem em ajuda da nossa fragilidade, e
assim a Mãe-Igreja, com a sua oração e a sua vida, é capaz de acudir à fraqueza
de uns com a santidade de outros. Portanto viver a indulgência no Ano Santo
significa aproximar-se da misericórdia do Pai, com a certeza de que o seu
perdão cobre toda a vida do crente. A indulgência é experimentar a santidade da
Igreja que participa em todos os benefícios da redenção de Cristo, para que o
perdão se estenda até às últimas consequências aonde chega o amor de Deus.
Vivamos intensamente o Jubileu, pedindo ao Pai o perdão dos pecados e a
indulgência misericordiosa em toda a sua extensão.
A misericórdia possui uma
valência que ultrapassa as fronteiras da Igreja. Ela relaciona-nos com o
judaísmo e o islamismo, que a consideram um dos atributos mais marcantes de
Deus. Israel foi o primeiro que recebeu esta revelação, permanecendo esta na
história como o início duma riqueza incomensurável para oferecer à humanidade
inteira. Como vimos, as páginas do Antigo Testamento estão permeadas de
misericórdia, porque narram as obras que o Senhor realizou em favor do seu
povo, nos momentos mais difíceis da sua história. O islamismo, por sua vez,
coloca entre os nomes dados ao Criador o de Misericordioso e Clemente. Esta
invocação aparece com frequência nos lábios dos fiéis muçulmanos, que se sentem
acompanhados e sustentados pela misericórdia na sua fraqueza diária. Também
eles acreditam que ninguém pode pôr limites à misericórdia divina, porque as
suas portas estão sempre abertas.
Possa este Ano Jubilar, vivido na
misericórdia, favorecer o encontro com estas religiões e com as outras nobres
tradições religiosas; que ele nos torne mais abertos ao diálogo, para melhor
nos conhecermos e compreendermos; elimine todas as formas de fechamento e
desprezo e expulse todas as formas de violência e discriminação.
O pensamento volta-se agora para
a Mãe da Misericórdia. A doçura do seu olhar nos acompanhe neste Ano Santo,
para podermos todos nós redescobrir a alegria da ternura de Deus. Ninguém, como
Maria, conheceu a profundidade do mistério de Deus feito homem. Na sua vida,
tudo foi plasmado pela presença da misericórdia feita carne. A Mãe do
Crucificado Ressuscitado entrou no santuário da misericórdia divina, porque
participou intimamente no mistério do seu amor.
Escolhida para ser a Mãe do Filho
de Deus, Maria foi preparada desde sempre, pelo amor do Pai, para ser Arca da
Aliança entre Deus e os homens. Guardou, no seu coração, a misericórdia divina
em perfeita sintonia com o seu Filho Jesus. O seu cântico de louvor, no limiar
da casa de Isabel, foi dedicado à misericórdia que se estende « de geração em
geração » (Lc 1, 50). Também nós estávamos presentes naquelas palavras
proféticas da Virgem Maria. Isto servir-nos-á de conforto e apoio no momento de
atravessarmos a Porta Santa para experimentar os frutos da misericórdia divina.
Ao pé da cruz, Maria, juntamente
com João, o discípulo do amor, é testemunha das palavras de perdão que saem dos
lábios de Jesus. O perdão supremo oferecido a quem O crucificou, mostra-nos até
onde pode chegar a misericórdia de Deus. Maria atesta que a misericórdia do
Filho de Deus não conhece limites e alcança a todos, sem excluir ninguém.
Dirijamos-Lhe a oração, antiga e sempre nova, da Salve Rainha, pedindo-Lhe que
nunca se canse de volver para nós os seus olhos misericordiosos e nos faça
dignos de contemplar o rosto da misericórdia, seu Filho Jesus.
E a nossa oração estenda-se
também a tantos Santos e Beatos que fizeram da misericórdia a sua missão vital.
Em particular, o pensamento volta-se para a grande apóstola da Misericórdia,
Santa Faustina Kowalska. Ela, que foi chamada a entrar nas profundezas da
misericórdia divina, interceda por nós e nos obtenha a graça de viver e
caminhar sempre no perdão de Deus e na confiança inabalável do seu amor.
Será, portanto, um Ano Santo
extraordinário para viver, na existência de cada dia, a misericórdia que o Pai,
desde sempre, estende sobre nós. Neste Jubileu, deixemo-nos surpreender por
Deus. Ele nunca Se cansa de escancarar a porta do seu coração, para repetir que
nos ama e deseja partilhar connosco a sua vida. A Igreja sente, fortemente, a
urgência de anunciar a misericórdia de Deus. A sua vida é autêntica e credível,
quando faz da misericórdia seu convicto anúncio. Sabe que a sua missão
primeira, sobretudo numa época como a nossa cheia de grandes esperanças e
fortes contradições, é a de introduzir a todos no grande mistério da
misericórdia de Deus, contemplando o rosto de Cristo. A Igreja é chamada, em
primeiro lugar, a ser verdadeira testemunha da misericórdia, professando-a e
vivendo-a como o centro da Revelação de Jesus Cristo. Do coração da Trindade,
do íntimo mais profundo do mistério de Deus, brota e flui incessantemente a
grande torrente da misericórdia. Esta fonte nunca poderá esgotar-se, por maior
que seja o número daqueles que dela se abeirem. Sempre que alguém tiver
necessidade poderá aceder a ela, porque a misericórdia de Deus não tem fim.
Quanto insondável é a profundidade do mistério que encerra, tanto é inesgotável
a riqueza que dela provém.
Neste Ano Jubilar, que a Igreja
se faça eco da Palavra de Deus que ressoa, forte e convincente, como uma
palavra e um gesto de perdão, apoio, ajuda, amor. Que ela nunca se canse de
oferecer misericórdia e seja sempre paciente a confortar e perdoar. Que a
Igreja se faça voz de cada homem e mulher e repita com confiança e sem cessar:
« Lembra-te, Senhor, da tua misericórdia e do teu amor, pois eles existem desde
sempre » (Sl 25/24, 6).
Dado em Roma, junto de São Pedro,
no dia 11 de Abril – véspera do II Domingo de Páscoa ou da Divina Misericórdia – do Ano do Senhor de
2015, o terceiro de pontificado.
Francisco
[1] Cf. Conc. Ecum. Vat. II,
Const. dogm. Dei Verbum, 4.
[2] Discurso de abertura do
Concílio Ecuménico Vaticano II, Gaudet Mater Ecclesia (11 de Outubro de 1962),
2-3.
[3] Alocução na última sessão pública (7 de
Dezembro de 1965).
[4] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm.
Lumen gentium, 16; Const. past. Gaudium et spes, 15.
[5] Tomás de Aquino, Summa theologiae, II-II,
q. 30, a. 4.
[6] Domingo XXVI do Tempo Comum. Esta colecta
já aparece, no séc. VIII, entre os textos eucológios do Sacramentário Gelasiano
(1198).
[7] Cf. Homilia 21: CCL 122, 149-151.
[8] Exort. ap. Evangelii gaudium, 24.
[9] João Paulo II, Carta enc. Dives in
misericordia, 2.
[10] Ibid., 15.
[11] Ibid., 13.
[12] Ditos de luz e amor, 57.
[13] Enarratio in Psalmos, 76,
11.
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