ABDICAÇÃO
Toma-me, ó noite eterna, nos
teus braços
E chama-me teu filho... eu sou
um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e
cansaços.
Minha espada, pesada a braços
lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu ceptro e coroa - eu os
deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.
Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão
fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e
calma
Como a paisagem ao morrer do
dia.
1913
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Lê-se e volta-se a ler Fernando Pessoa, uma, duas e não sei quantas vezes mais e o que fica da leitura é a beleza "escultórica" do verso que se encaixa em cada estrofe como se cada um fosse as telhas de um telhado harmonioso, que defende a sua poesia do mesmo modo como este o defende das tempestades, porque a poesia de Fernando Pessoa tem no fecho de cada ideia a beleza simples mas composta do seu pensamento que não deixa entrar dúvidas de interpretação.
O soneto "Abdicação" é um retrato fiel do rei que ele foi e que, no seu tempo, como não raro acontece com os grandes vultos da História, não lhe deu o reinado que ele merecia, tendo este e com todo o direito - mas a destempo - ter-lhe sido outorgado após a noite que caiu sobre a sua vida, o que prova que hã-de haver sempre os que preenchem inteiramente e com todo o brilho um verso imorredoiro de LuÍs da Camões, quando nos fala dos que por obras valorosas / se vão da lei da morte libertando.
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