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quarta-feira, 4 de maio de 2016

A Voz - Um poema sobre Deus de Alexandre Herculano

A Voz

 É tão suave ess'hora,
 Em que nos foge o dia,
 E em que suscita a Lua
 Das ondas a ardentia,

 Se em alcantis marinhos,
 Nas rochas assentado,
 O trovador medita
 Em sonhos enleado!

 O mar azul se encrespa
 Coa vespertina brisa,
 E no casal da serra
 A luz já se divisa.

 E tudo em roda cala
 Na praia sinuosa,
 Salvo o som do remanso
 Quebrando em furna algosa.

 Ali folga o poeta
 Nos desvarios seus,
 E nessa paz que o cerca
 Bendiz a mão de Deus.

 Mas despregou seu grito
 A alcíone gemente,
 E nuvem pequenina
 Ergueu-se no ocidente:

 E sobe, e cresce, e imensa
 Nos céus negra flutua,
 E o vento das procelas
 Já varre a fraga nua.

 Turba-se o vasto oceano,
 Com hórrido clamor;
 Dos vagalhões nas ribas
 Expira o vão furor,

 E do poeta a fronte
 Cobriu véu de tristeza;
 Calou, à luz do raio,
 Seu hino à natureza.

 Pela alma lhe vagava
 Um negro pensamento,
 Da alcíone ao gemido,
 Ao sibilar do vento.

 Era blasfema ideia,
 Que triunfava enfim;
 Mas voz soou ignota,
 Que lhe dizia assim:

«Cantor, esse queixume
 Da núncia das procelas,
 E as nuvens, que te roubam
 Miríades de estrelas,

 E o frémito dos euros,
 E o estourar da vaga,
 Na praia, que revolve,
 Na rocha, onde se esmaga,

 Onde espalhava a brisa
 Sussurro harmonioso,
 Enquanto do éter puro
 Descia o Sol radioso,

 Tipo da vida do homêm,
 É do universo a vida:
 Depois do afã repouso,
 Depois da paz a lida.

 Se ergueste a Deus um hino
 Em dias de amargura;
 Se te amostraste grato
 Nos dias de ventura,

 Seu nome não maldigas
 Quando se turba o mar:
 No Deus, que é pai, confia,
 Do raio ao cintilar.

 Ele o mandou: a causa
 Disso o universo ignora,
 E mudo está. O nume,
 Como o universo, adora!»

Oh, sim, torva blasfémia
 Não manchará seu canto!
 Brama a procela embora;
 Pese sobre ele o espanto;

 Que de sua harpa os hinos
 Derramará contente
 Aos pés de Deus, qual óleo
 Do nardo recendente.

Alexandre Herculano, in 'A Harpa do Crente'
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Depois desta leitura a sensação que fica é que nem sempre a sociedade é justa nos julgamentos apressados que se fazem e, se a Igreja - ainda hoje - nalguns sectores, vê em Alexandre Herculano um desgarrado, que o foi, efectivamente, contra o clero do seu tempo por razões, naturalmente bem pesadas e medidas, esta poesia, assinala que Alexandre Herculano era um, conscientemente, um deísta que a sociedade do seu tempo não soube compreender em toda a sua dimensão humana e por extensão cultural, tal opinião galgou o tempo e ainda hoje está latente, algo que sempre acontece quando nos esquecemos de situar as pessoas no tempo em que viveram.

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