O Sonho, pintura de Pierre Pluvis de Chavannes
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O que é bonito neste mundo, e anima, é ver que na vindima de cada sonho
fica a cepa a sonhar outra aventura.
(Miguel Torga)
Torga foi um génio de criação
artística no domínio do estro que costuma marcar como “marca d’água” o verbo que
reflecte a fina sensibilidade do seu criador, como aconteceu com muitas das
palavras de recorte telúrico com as quais este transmontano de gema, não raro,
brindou os seus leitores ao longo de uma produção literária valiosíssima.
Muitas das suas palavras brotaram
a partir do miradouro de São Leonardo da Galafura onde costumava admirar o
Douro que corria aos seus pés – não rendido, mas dominador - enchendo a sua alma que se comprazia nos
socalcos dos montes, quando ao olhar as cepas dos vinhedos alinhados numa
geometria artística a emoldurar a terra úbere, eram um regalo para os olhos
deslumbrados do grande Poeta e profundos motivos de meditação.
Não sabemos se a frase que vai em
epígrafe nasceu ali, mas que foi ali buscar alimento espiritual, parece não
haver dúvidas.
Ao dizer-nos que nos deve animar
o facto de sabermos que na vindima de
cada sonho fica a cepa a sonhar outra aventura, o Poeta transmite-nos não o dom daquela esperança que o homem costuma
pedir de empréstimo ao seu desejo natural de felicidade, mas a adesão
voluntária, firme e absoluta do espírito à certeza que ele sentia ao olhar as
cepas das videiras que enchiam o seu olhar, porque depois da vindima e da
quedas das folhas, nas raízes que as prendiam à terra ou às fráguas continuavam
vivas na sua morte aparente, as vindimas do ano seguinte.
A vida do homem prende-se a este
conceito.
Na certeza que é preciso
alimentar como um sonho que tem de sobreviver à morte de um outro sonho
qualquer, devendo estar isto latente na vida de todos os que, prosseguem ao longo da sua caminhada terrena o
aviso sensato do romancista francês, Henry Céard, que nos diz: o desprendimento de tudo
nunca é tão completo que não sobreviva ainda um sonho à morte dos sonhos, ou
seja, por cima de todas as catástrofes – que nos desalentados costuma ser a
morte de todos os sonhos – tem de
continuar a existir o arreganho de se continuar a sonhar como uma nova etapa, ou
outra aventura, como diz Miguel
Torga.
Desistir, é por isso, um verbo
que deve ser vedado à linguagem e à acção do homem, porquanto o conduz à
condição de servo que não pensa por si e não ao dono que ele é do seu próprio
destino, do qual deve dar contas, não ao outro, mas a si mesmo a quem deve por
um dever de dignidade humana o respeito e o amor-próprio que o ajuda a
encontrar pela rota dos sonhos, aquele que ainda lhe falta realizar.
E, quantas vezes, acontece, ser
precisamente no sonho que ainda não foi vivido que se encontra a felicidade que
em vão se procurou nos sonhos passados.
Assim, é preciso que na vindima de cada sonho se deixe ficar
incólume a vontade de seguir adiante, porque é na cepa – que é a vida de cada
homem - que tem de se continuar sonhar outra aventura, sem o que deixamos
ficar para trás não só o que se perdemos como aquilo que é possível ganhar.
Não nos esqueçamos que só existe,
verdadeiramente, o desprendimento de tudo no último feixe de vida e que,
enquanto esta durar, temos de fazer sobreviver a todos os sonhos perdidos o que
ainda não foi vivido.
Esta é a senha.Não há outra.
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