No "Prefácio" que Camilo Castelo Branco escreveu para o seu livro: AO ANOITECER DA VIDA - ÚLTIMOS VERSOS, os parágrafos finais merecem uma leitura atenta, tendo em conta que em 1862 , Camilo Castelo Branco tinha 37 anos e a poesia "VEM" parece adivinhar alguém à beira da morte, que naquele tempo ainda estava muito longe.
Eis, porque é intrigante o último parágrafo e cuja explicação apenas se encontra na vida desregrada que ele levou, o que parece aconteceu bem cedo com este grande cultor da língua portuguesa.
Muitas vezes de mim para mim
intendi que a poesia talhada para este século não era o que eu estava fazendo;
mas tão breve, entre coração e coração, eram sadio da minha cubiça como poeta,
e como tudo, que nunca me detive a pensar se eu devia ou podia ensaiar a útil,
a necessária, a verdadeira poesia. Eu via alguns raros exemplos de poetas, cumprindo
dever de evangelizadores: era Alexandre Herculano com a Harpa do crente; era
Castilho com a sua santa indefesa missão de ensinar crianças e fazer mais homens
os homens do futuro; era Almeida Garrett agriIhoando o afecto às nossas coisas,
ao talento e à pátria, com Camões e Fr. Luiz de Sousa prosa melhor que todas as
poesias; eram alguns raptos de ocasional inspiração, humanos nacionais como a
Bandeira Negra de Mendes Leal, e a Inglaterra de Alexandre Braga.
Eram todos modelos muito de seguir;
mas eu nem os rastreava na forma, nem na ideia, nem no entusiasmo. Criminoso egoísmo,
que eu ainda agora quis disfarçar sob capa de desambicioso desapreço de tudo que
não fosse o ideal, o infinito, o quer que fulge para além do amor à mulher, estrela
momentânea deste céu carreado de tempestades!
Fiquei nisto neste nada até aos
trinta e sete anos.
Era tempo do acabar, muito antes desta idade; mas cá
dentro, na alma do homem, sejam poucas ou muitas, temporãs ou serôdias as rugas
que estão mentindo fora, o tempo não se computa com a certidão do batismo. A
alma não é da razão. Agora, sim. Nestes baloiços da minha borrascosa vida, já
não vêem estrelas.
Está diante de mim um ponto
escuro, para onde todos os ventos me atiram.
Já não quero saber do timão nem
da agulha.
Aquele ponto negro é a sepultura:
o esquecimento.
Desta pequena distancia em que
estou, vou atirar para lá com os meus últimos versos: é bem que eles vão adiante
de mim.
Lisboa 23 de Dezembro de 1862.
VEM
Tenho pensado na morte,
Tenho-a visto leda e bela,
Como pálida donzela
Engrinaldada de flores;
Enamora-me a amizade
D'esta fada dos sepulcros;
Ela só diz a verdade;
Nunca o perjúrio, a mentira
Maculou seus lábios pulcros.
Morte! Eu dou-te a minha lira.
Vem, doce esposa, vem ver,
Como em teus braços delira,
Com frenético prazer,
O teu amante consorte;
Vem colher o beijo extremo
Sobre o lábio agonizante,
De quem dá um riso á morte,
Como a um bem do Céu supremo.
1856.
A confirmar o nosso espanto já acima exposto, acontece que esta poesia - publicada em 1862 de acordo com o Prefácio do livro tem a data de 1856 - tinha Camilo 31 anos - pelo que, ainda mais se adensa o motivo do seu desconsolo perante a vida, algo que os seus biógrafos bem conhecem, mas que, neste singelo apontamento fica apenas aflorado, mas deixando bem patente que a ideia da morte - acontecida na sua casa de S. Miguel de Seide em 1890 - era uma ideia antiga que percorreu um grande parte da vida do eminente escritor.
Uma lembrança de Camilo Castelo Branco é, assim, o penhor que deixo ficar desse génio da escrita que encheu a minha mocidade de prosas perfeitas, trabalhadas como se a pena de Camilo Castelo Branco fosse parecida com o cinzel do escultor.
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