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sábado, 30 de abril de 2016

O religioso que houve em Alexandre Herculano

Gravura publicada pela Revista "O Occidente"
 1ºano - Vol. I - nº1 - 1 de Janeiro de 1878


Cresci até à idade da adolescência - e sempre - naquele estádio de tempo fui inquietado por um mal-dizer da religião relativamente ao grande homem das Letras Portuguesa, Alexandre Herculano, algo que desde que estabeleci o equilíbrio mental entre a fé e a razão, ganhou em mim um desejo ardente de conhecer o motivo do desprazer com que a Igreja - que nunca abandonei - falava daquele vulto eminente.

Aconteceu há dias, que mais uma vez, a minha psicologia cognitiva deu com a releitura do poema Deus, o que de novo fez aflorar em mim aquilo que há algumas dezenas de anos tinha assaltado o meus espírito: Alexandre Herculano não foi um crente fácil relativamente à postura sócio-religiosa dos clérigos do seu século, mas jamais deixou de ser um crente em Deus e na doutrina pregada por Jesus.

Leiamos com atenção o poema.
É, na minha opinião um momento sublime. Enternecedor, pelo grande respeito que o homem que habitou o arcaboiço humano de Herculano soube cantar a beleza do Omnipotente.


Deus

Nas horas do silêncio, à meia-noite,
Eu louvarei o Eterno!
Ouçam-me a terra, e os mares rugidores,
E os abismos do inferno.
Pela amplidão dos céus meus cantos soem
E a Lua prateada
Pare no giro seu, enquanto pulso
Esta harpa a Deus sagrada.

Antes de tempo haver, quando o infinito
Media a eternidade,
E só do vácuo as solidões enchia
De Deus a imensidade,
Ele existia, em sua essência envolto,
E fora dele o nada:
No seio do Criador a vida do homem
Estava ainda guardada:
Ainda então do mundo os fundamentos
Na mente se escondiam
Do Omnipotente, e os astros fulgurantes
Nos céus não se volviam.

Eis o Tempo, o Universo, o Movimento
Das mãos sai do Senhor:
Surge o Sol, banha a terra, e desabrocha
Sua primeira flor:
Sobre o invisível eixo range o globo:
O vento o bosque ondeia:
Retumba ao longe o mar: da vida a força
A natureza anseia!

Quem, dignamente, ó Deus, há de louvar-te
Ou cantar teu poder?
Quem dirá de teu braço as maravilhas,
Fonte de todo o ser,
No dia da criação; quando os tesouros
Da neve amontoaste;
Quando da terra nos mais fundos vales
As águas encerraste?!
E eu onde estava, quando o Eterno os mundos,
Com destra poderosa,
Fez, por lei imutável, se livrassem
Na mole poderosa?
Onde existia então? No tipo imenso
Das gerações futuras;
Na mente do meu Deus. Louvor a Ele
Na terra e nas alturas!
Oh, quanto é grande o Rei das tempestades,
Do raio, e do trovão!
Quão grande o Deus, que manda, em seco estio,
Da tarde a viração!
Por sua Providência nunca, embalde,
Zumbiu mínimo inseto;
Nem volveu o elefante, em campo estéril,
Os olhos inquieto.
Não deu ele à avezinha o grão da espiga,
Que ao ceifador esquece;
Do norte ao urso o Sol da primavera,
Que o reanima e aquece?
Não deu Ele à gazela amplos desertos,
Ao cervo a amena selva,
Ao flamingo os pauis, ao tigre o antro,
No prado ao touro a relva?
Não mandou Ele ao mundo, em luto e trevas,
Consolação e luz?
Acaso, em vão, algum desventurado
Curvou-se aos pés da cruz?
A quem não ouve Deus? Somente ao ímpio
No dia da aflição,
Quando pesa sobre ele, por seus crimes,
Do crime a punição.

Homem, ente imortal, que és tu perante
A face do Senhor? És a junça do brejo, harpa quebrada
Nas mãos do trovador!
Olha o velho pinheiro, campeando
Entre as nuvens alpinas:
Quem irá derribar o rei dos bosques
Do trono das colinas?

Ninguém! Mas ai do abeto, se o seu dia
Extremo Deus mandou!
Lá correu o aquilão: fundas raízes
Aos ares lhe assoprou.
Soberbo, sem temor, saiu na margem
Do caudaloso Nilo,
O corpo monstruoso ao Sol voltando,
Medonho crocodilo.
De seus dentes em volta o susto habita;
Vê-se a morte assentada
Dentro em sua garganta, se descerra
A boca afogueada:
Qual duro arnês de intrépido guerreiro

É seu dorso escamoso;
Como os últimos ais de um moribundo
Seu grito lamentoso:
Fumo e fogo respira quando irado;
Porém, se Deus, mandou,
Qual do norte impelida a nuvem passa,
Assim ele passou!

Teu nome ousei cantar! — Perdoa, ó Nume;
Perdoa ao teu cantor!
Dignos de ti não são meus frouxos hinos,
Mas são hinos de amor.
Embora vis hipócritas te pintem
Qual bárbaro tirano:
Mentem, por dominar, com férreo ceptro,
O vulgo cego e insano.
Quem os crê é um ímpio! Recear-te
É maldizer-te, ó Deus;
É o trono dos déspotas da terra
Ir colocar nos céus.
Eu, por mim, passarei entre os abrolhos
Dos males da existência
Tranquilo, e sem terror, à sombra posto
Da tua Providência.

                                                          Alexandre Herculano



Depois desta leitura o que fica a sobrenadar sobre a minha consciência é que a moral humana ao assentar numa visão que transcende o indivíduo, faz que toda a lógica da explicação da história humana tenha de ser feita em  termos transpessoais e, logo, como primeira consequência, vai atingir a sobrenaturalidade que rege o existir da criatura.

Se, como pensam os biógrafos do grande escritor este encontrou farto material de inspiração em Santo Agostinho, este facto tê-lo-ia levado a concluir que a realidade da verdade imutável não se faz pelos acontecimentos mutáveis da vida, mas por aqueles que se fundam nas ideias eternas, fazendo, assim, que por detrás dos acontecimentos humanos estão as ideias que movimentam a história dos dias e, assim, cada civilização para ser harmónica e equilibrada tem de ter - e obedecer - a uma base ontológica que em si mesma represente aquela ideia de âmbito superior que tem a fonte na sabedoria infinita de Deus.

É a essa "ideia" que Herculano se rendeu ao escrever o poema "Deus", ao qual, humildemente, confessa, não serem dignos seus frouxos hinos, mas serem hinos de amor.

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