Gravura publicada pela Revista "O Occidente"
1ºano - Vol. I - nº1 - 1 de Janeiro de 1878
Cresci até à idade da adolescência - e sempre - naquele estádio de tempo fui inquietado por um mal-dizer da religião relativamente ao grande homem das Letras Portuguesa, Alexandre Herculano, algo que desde que estabeleci o equilíbrio mental entre a fé e a razão, ganhou em mim um desejo ardente de conhecer o motivo do desprazer com que a Igreja - que nunca abandonei - falava daquele vulto eminente.
Aconteceu há dias, que mais uma vez, a minha psicologia cognitiva deu com a releitura do poema Deus, o que de novo fez aflorar em mim aquilo que há algumas dezenas de anos tinha assaltado o meus espírito: Alexandre Herculano não foi um crente fácil relativamente à postura sócio-religiosa dos clérigos do seu século, mas jamais deixou de ser um crente em Deus e na doutrina pregada por Jesus.
Leiamos com atenção o poema.
É, na minha opinião um momento sublime. Enternecedor, pelo grande respeito que o homem que habitou o arcaboiço humano de Herculano soube cantar a beleza do Omnipotente.
Deus
Nas horas do silêncio, à
meia-noite,
Eu louvarei o Eterno!
Ouçam-me a terra, e os mares
rugidores,
E os abismos do inferno.
Pela amplidão dos céus meus
cantos soem
E a Lua prateada
Pare no giro seu, enquanto pulso
Esta harpa a Deus sagrada.
Antes de tempo haver, quando o
infinito
Media a eternidade,
E só do vácuo as solidões enchia
De Deus a imensidade,
Ele existia, em sua essência
envolto,
E fora dele o nada:
No seio do Criador a vida do
homem
Estava ainda guardada:
Ainda então do mundo os
fundamentos
Na mente se escondiam
Do Omnipotente, e os astros
fulgurantes
Nos céus não se volviam.
Eis o Tempo, o Universo, o
Movimento
Das mãos sai do Senhor:
Surge o Sol, banha a terra, e
desabrocha
Sua primeira flor:
Sobre o invisível eixo range o
globo:
O vento o bosque ondeia:
Retumba ao longe o mar: da vida
a força
A natureza anseia!
Quem, dignamente, ó Deus, há de
louvar-te
Ou cantar teu poder?
Quem dirá de teu braço as
maravilhas,
Fonte de todo o ser,
No dia da criação; quando os
tesouros
Da neve amontoaste;
Quando da terra nos mais fundos
vales
As águas encerraste?!
E eu onde estava, quando o
Eterno os mundos,
Com destra poderosa,
Fez, por lei imutável, se
livrassem
Na mole poderosa?
Onde existia então? No tipo
imenso
Das gerações futuras;
Na mente do meu Deus. Louvor a
Ele
Na terra e nas alturas!
Oh, quanto é grande o Rei das
tempestades,
Do raio, e do trovão!
Quão grande o Deus, que manda,
em seco estio,
Da tarde a viração!
Por sua Providência nunca,
embalde,
Zumbiu mínimo inseto;
Nem volveu o elefante, em campo
estéril,
Os olhos inquieto.
Não deu ele à avezinha o grão da
espiga,
Que ao ceifador esquece;
Do norte ao urso o Sol da
primavera,
Que o reanima e aquece?
Não deu Ele à gazela amplos
desertos,
Ao cervo a amena selva,
Ao flamingo os pauis, ao tigre o
antro,
No prado ao touro a relva?
Não mandou Ele ao mundo, em luto
e trevas,
Consolação e luz?
Acaso, em vão, algum
desventurado
Curvou-se aos pés da cruz?
A quem não ouve Deus? Somente ao
ímpio
No dia da aflição,
Quando pesa sobre ele, por seus
crimes,
Do crime a punição.
Homem, ente imortal, que és tu
perante
A face do Senhor? És a junça do
brejo, harpa quebrada
Nas mãos do trovador!
Olha o velho pinheiro, campeando
Entre as nuvens alpinas:
Quem irá derribar o rei dos
bosques
Do trono das colinas?
Ninguém! Mas ai do abeto, se o
seu dia
Extremo Deus mandou!
Lá correu o aquilão: fundas
raízes
Aos ares lhe assoprou.
Soberbo, sem temor, saiu na
margem
Do caudaloso Nilo,
O corpo monstruoso ao Sol
voltando,
Medonho crocodilo.
De seus dentes em volta o susto
habita;
Vê-se a morte assentada
Dentro em sua garganta, se
descerra
A boca afogueada:
Qual duro arnês de intrépido
guerreiro
É seu dorso escamoso;
Como os últimos ais de um
moribundo
Seu grito lamentoso:
Fumo e fogo respira quando
irado;
Porém, se Deus, mandou,
Qual do norte impelida a nuvem
passa,
Assim ele passou!
Teu nome ousei cantar! — Perdoa,
ó Nume;
Perdoa ao teu cantor!
Dignos de ti não são meus
frouxos hinos,
Mas são hinos de amor.
Embora vis hipócritas te pintem
Qual bárbaro tirano:
Mentem, por dominar, com férreo
ceptro,
O vulgo cego e insano.
Quem os crê é um ímpio!
Recear-te
É maldizer-te, ó Deus;
É o trono dos déspotas da terra
Ir colocar nos céus.
Eu, por mim, passarei entre os
abrolhos
Dos males da existência
Tranquilo, e sem terror, à
sombra posto
Da tua Providência.
Alexandre Herculano
Depois desta leitura o que fica a sobrenadar sobre a minha consciência é que a moral humana ao assentar numa visão que transcende o indivíduo, faz que toda a lógica da explicação da história humana tenha de ser feita em termos transpessoais e, logo, como primeira consequência, vai atingir a sobrenaturalidade que rege o existir da criatura.
Se, como pensam os biógrafos do grande escritor este encontrou farto material de inspiração em Santo Agostinho, este facto tê-lo-ia levado a concluir que a realidade da verdade imutável não se faz pelos acontecimentos mutáveis da vida, mas por aqueles que se fundam nas ideias eternas, fazendo, assim, que por detrás dos acontecimentos humanos estão as ideias que movimentam a história dos dias e, assim, cada civilização para ser harmónica e equilibrada tem de ter - e obedecer - a uma base ontológica que em si mesma represente aquela ideia de âmbito superior que tem a fonte na sabedoria infinita de Deus.
É a essa "ideia" que Herculano se rendeu ao escrever o poema "Deus", ao qual, humildemente, confessa, não serem dignos seus frouxos hinos, mas serem hinos de amor.
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