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quarta-feira, 27 de abril de 2016

O velho ancoradouro do Restelo de onde partiu Vasco da Gama



Gravura publicada a abrir o livro 
"Noticia Histórica e Descritiva do Mosteiro de Belém"


A curiosa transcrição ipsis-verbis que se segue é da autoria de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro, um brasileiro, filho de mãe portuguesa, que assim nos dá a notícia do velho ancoradouro do Restelo, que na época da construção do Mosteiro de Belém - hoje vulgarmente conhecido pelos "Jerónimos" - tinha em frente as águas do rio Tejo conforme documenta a velha gravura inserta neste velho e precioso livro.




Se a veneranda sé de Coimbra é para toda a Europa um dos bem conservados documentos da arquitectura, nos primeiros séculos do engrandecimento da Igreja, — se o amplo e variado convento de Cristo em Tomar, recorda muitos feitos dignos, praticados no orbe em diferentes épocas, pela ordem independente da do Templo r — se o grandioso mosteiro da Batalha é um padrão eterno levantado & independência e valor dos portugueses nos fins do século 14.°, — se o sumptuoso palácio-convento de Mafra é um monumento de mármore erguido como para ostentar a riqueza e fausto do luso Salomão no principio do século 18.", outro templo existe, de época quase intermédia a estas duas ultimas, menos nomeado e conhecido, não obstante ser o mais próximo da capital,—estando até presentemente por assim dizer encravado nas suas casarias, e não desmerecer ampla noticia; já pelo local em que foi situado, e gloriosas recordações, que traz á memoria a sua fundação; já pelas veneráveis preciosidades que encerra; já não é o menos importante  pela especialidade e valia de sua arquitectura. 

Falíamos, bem se vê, do real mosteiro de Belém, outrora dos frades de S. Jerónimo, e hoje ocupado, desde a supressão das ordens religiosas neste pais, pelos alunos da Real Casa Pia, servindo a Igreja, com a invocação de Nossa Senhora de Belém, de freguesia daquele bairro. Descreveremos o edifício, começando pela historia da sua fundação, e depois daremos noticia da mencionada instituição, criada pela piedosíssima rainha Maria I, e exaltada pelos maternas desvelos de sua augusta bisneta.

Seguindo Tejo abaixo pela margem direita, a uma légua a par da antiga Lisboa, existia um logra chamado o Restelo, fronteiro ao ancoradouro mais seguro que primeiro encontravam os navios que entravam a barra, e igualmente o mais próximo desta, que se oferecia aos que se preparavam a seguir viagem: porquanto no vizinho pontal d'ara, quáse defronte da Trafaria, findava, como ainda hoje, a porção de rio funda e entalada entre montes, que fornece tão belo abrigo:—dai para fora, até á própria enseada de Cascais, os bancos, cachopos, desabrigos, e mares de vagalhão, tanto na proximidade da terra, deixam ainda agora mui cautelosos os que ás unhas da ancora confiaram a sorte do navio, que muitas vezes garra, e ao mínimo descuido se expõe ao perigo. 

Ora, havendo, como dizíamos, no referido logra tão bom ancoradouro, não deixariam de se estender ao seu aproveitamento os desvelos da príncipe navegador. 

Vendo pois o infante D. Henrique quanta utilidade resultaria da fundação de uma ermida naquela praia, que ofertasse aos mareantes prontos socorros espirituais, resolveu executa-la, doando-a á Ordem de Cristo, de que era mestre e administrador, e estabelecendo que os da mesma Ordem aí fossem por em prática as suas caritativas intenções. Depois a houve a coroa, que fez dela doação aos frades de S. Jerónimo como vamos a expor, cingindo-nos nesta parte precisamente á letra dos documentos que temos á vista.

El-rei D. Manuel, considerando ampliar o culto divino, e vendo como o assento e sitio de Santa Maria de Belém, assim por ser na praia e acerca desta cidade como por que ao logra vinham aportar e ancorar muitas naus, navios e gente, assim de estrangeiros como de naturais, era apto e pertencente para nele se fazer um mosteiro e casa honesta, em que podessem estar alguns religiosos que devotamente ministrassem e fizessem o  culto divino e agasalhassem «os pobres estrangeiros,» confessando-os e dando-lhes os outros sacramentos, resolveu de haver a si aquela ermida e assento de Belém, dando por escambo á Ordem de Cristo uma casa maior, que fora sinagoga dos judeus, situada onde tinha sido noutro tempo a judiaria grande, que então chamam Vilanova, que vem a ser o logra onda hoje está a Conceição Velha, igreja esta que se edificou logo depois, como consta de documentos confirmados ainda agora pela fachada da mesma igreja. Diz o rei fundador que os rendimentos desta ultima casa montavam em cincoenta mil réis, o que era mais do que a Ordem obtinha de Belém. 

E por ventura pela recordação que trazia este nome da pequena terra da Palestina, assim chamada, natalícia do filho de Deus, onde o mesmo S. Jerónimo vivera e tivera o seu instituto, ou, como el-rei declara, — pela devoção que ele próprio tinha ao mesmo santo (cujo provincial, frades e ermitães viviam sob a regra de S. Agostinho no hospício da Penha Longa, que fica no sopé meridional da serra de Sintra) houve por bem aos 22 de dezembro de 1498 de fazer doação á Ordem de S. Jerónimo do referido logra de Belém com seu pomar cercado de muro e casas conjuntas, que estavam começadas a edificar , e bem assim duma morada, que ficava próxima do chafariz vizinho, declarando fazer a mencionada doação com todas as entradas, saídas, logradouros, águas e pertenças com que eram possuídas pela Ordem de Cristo. 

Tudo com intenção de aí fundar um mosteiro daquela Ordem, cujos religiosos seriam obrigados para todo o sempre a uma missa diária por alma do infante D. Henrique fundador do dito logra, e assim pela de el-rei e seus sucessores, com clausula expressa de que quando o sacerdote fosse ao « Lavabo » se voltasse para os fieis dizendo em voz alta: « Rogai a Deus pela alma do infante D. Henrique, primeiro fundador desta casa, e por a de el-rei D. Manuel que a doou á nossa ordem.» 
O que sendo aceite pelos religiosos da ordem, lhes foi dada a posse dentro da capela do sobredito mosteiro, começado aos 21 de abril de 1500; e entre varias doações feitas ao convento não esqueceremos de mencionar a cessão da vintena do dinheiro das partes da Mina, e das mercadorias e cousas que vinham da índia. 

Assim achamos os alvarás de 12 de novembro de 1511 mandando para as suas obras entregar a Lourenço Fernandes, cavaleiro da casa real, que naturalmente as inspeccionava, cincoenta quintais de pimenta; de 16 de dezembro do ano seguinte recomendando o pagamento da vintena que lhe pertencia cobrar na casa da índia, e de 9 de maio de 1513 ordenando que para as ditas obras se dessem da mesma casa quinhentos quintais da mencionada especiaria, que então obtinha em Flandres subido preço: e pelo que afirma um cronista da ordem, o castelhano Siguença, se vê que alguns anos excedia a mesma vintena a oitenta mil cruzados, soma avultada, nos tempos em que a afluência do ouro e prata da América na circulação não tinha ainda produzido tão pasmosa quebra no valor destes metais. 

O que porem podemos com segurança afirmar é que, não obstante deixar o rei fundador encomendado no seu testamento que não se fizesse cessar esta renda, em quanto o mosteiro se não concluísse de todo, e que antes pelo contrario se aumentasse sendo preciso, vemos el-rei D. João III, por alvará de 23 de maio de 1529, fazer ao convento a esmola da vinte e cinco moios de trigo, o que dá bem a entender que não possuía de sobejo, apesar de estar isento de pagar dízimos, conforme fora concedido por bula do papa Leão X de 2 de setembro de 1816.


Não cabe aqui toda a riqueza da descrição do Mosteiro dos Jerónimos, que é o tema do precioso livro, que pela moldura do texto que o autor lhe imprimiu é uma jóia rara, de como uma descrição, sendo feita como esta se encontra tem com o brilho de quem sabe, como se fizesse uma súmula, dar-nos no entrelaçado das pedras a grandeza majestosa de todos os ornatos e esculturas que animam as pilastras que sustentam as abóbadas.

Fica, como apontamento histórico, o velho ancoradouro do Restelo, o lugar mais seguro que primeiro encontravam os navios que entravam a barra, e igualmente o mais próximo desta, que se oferecia aos que se preparavam a seguir viagem, como aconteceu em 8 de Julho de 1497, quando a armada de Vasco da Gama ali se despediu do rei D. Manuel I, à descoberta do caminho marítimo para a Índia.

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