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domingo, 26 de abril de 2015

Desfeho - Um poema de Miguel Torga




DESFECHO

Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte.)

Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...

E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.

Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.



Não deixa de ser intrigante esta poesia de Miguel Torga...
Começa por afirmar aquilo que apelida de "terror" de ver Deus em toda a parte, para na sua obstinação ter gasto as palavras de negação, mas vendo-O sempre,

Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...

Isto impressiona, vindo de quem vem, o que revela que Deus negado por Miguel Torga foi, apesar disso, uma companhia, e sendo assim, Ele foi ao longo da sua vida um fiel companheiro de jornada, o que acontece com muitos homens, só que nem todos têm a coragem e a honradez intelectual de o dizer, como teve este insigne Poeta transmontano.

E não deixa, efectivamente, de ser uma interrogação a parte final do poema, porque é ali que Miguel Torga - gastas as palavras - deixou de lhe fazer perguntas... mas quem sabe, se aquela mudez não teria sido interrogativa e a falar bem alto para dentro de si mesmo?

Como hoje a Igreja celebra Jesus Cristo na figura do Bom Pastor, o facto de Deus - fosse qual fosse o chão da caminhada - ter andado sempre com ele, prova que o grande Poeta apesar de ter sido uma ovelha desgarrada mereceu sempre a sua companhia porque até as ovelhas desgarradas pertencem ao redil divino.

Por esse motivo a sua alma nobre que tão bem retratou a Natureza telúrica da sua região natal - Obra de Deus - que o encantou debruçado no Miradouro de S- Leonardo de Galafura, ao tê-la exaltado em versos magistrais - sem o ter dito - por certo que houve entre o Criador e o retratista-Poeta, um encontro tal que na sua morte o Deus-Eterno recebeu em seus braços a ovelha desgarrada que existiu em Miguel Torga.

E isto, leva.nos a concluir que o "Desfecho" sendo o nome que ele deu à poesia em que por fim, declara a sua mudez perante a divina presença impertinente, só Deus é que sabe se ela não foi um grito de encontro e de aceitação da sua presença, porque nunca - como ele declara deixou de o acompanhar por todos os caminhos onde decorreu a sua vida, prova de que, cada homem é um mistério, tal como é, dentro dele a divina presença que ele chama no poema de  impertinente, e com razão, diga-se, porque o Bom Pastor, sendo-o de todos as ovelhas do seu rebanho torna-se impertinente até chamar a si a ovelha desgarrada.

Eis, porque, quando Miguel Torga diz:

                                          Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.

Leio a parte final deste introspectivo poema e porque sou um profundo admirador do grande Poeta, sinto que há nele,  redenção, por dizer que o tempo ao ter moído na sua mó - nas mil e uma voltas que ela deu - o joio amargo das palavras que ele disse a Deus, depois disso - como bons amigos - ambos resolveram seguir a par, embora mudos e malogrados, o que me deixa a pensar que estando tudo dito, na liberdade que o homem tem de escolher os seus companheiros, só caminha com ele - a par - quem ele quer, pelo que aquele Caminhante que ele sentiu caminhar ao pé dele, foi o Deus que nunca o abandonou e a quem ele retribuiu do mesmo modo.

Em tempos, ouvi um mestre que eu tive dizer: Deus é o galgo do homem.

Na altura aquela frase sou-me muito mal, mas lendo com atenção o poema "Desfecho", sinto que aquela frase é verdadeira, porquanto, Deus andou sempre - como um galgo - ora à frente, ora atrás de Miguel Torga, até ao ponto de caminhar a par com a ovelha desgarrada o que sugere que ela se sentia bem com a companhia do Pai Eterno, O qual, por razão acrescida, se alegrou, levando-a seu lado.

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