A publicação de almanaques - enquanto repositório
de textos literários de cultura diversificada, de que fazem parte obrigatória o
calendário, o santoral, o horóscopo, luas, marés, informações agrícolas,
etc. - é um costume muito antigo, não só
entre nós, como em todo o mundo civilizado.
Vem isto a propósito das minhas recentes férias em
P......... - o meu torrão natal, mais uma vez queimado quinze anos depois - quando
me dispus a olhar num gesto grato à minha sensibilidade a velha Biblioteca da
minha casa e, dei - mais um vez - com o “Novo Almanach de Lembranças Luso
Brasileiro de 1885” ,
na grafia coeva, uma vetusta publicação com 120 anos de idade amarelecida pelo
tempo da estadia na minha casa beirã, mas contendo alguma informação cultural
que ainda hoje se mantém actual e me diverte, ainda, possivelmente pelo carinho
familiar que tal publicação me desperta e, até, me comove.
Ao compulsar o velho livro, acção que faço sempre
religiosamente, dei que na pág. 377 aparece um apontamento com o título que é
uma pergunta e encima esta pequena crónica:
“Porque são belas as judias?”.
No corpo do texto - sem autor conhecido - aparece
uma imagem de uma mulher muito bela segurando cuidadosamente uma ânfora pelo
gesto cuidadoso das mãos e dos braços, naturalmente cheia de um líquido – que
não será água, pela vestimenta cuidada e de aspecto nobre da sua proprietária
- que se apresenta lindamente vestida
com uma larga túnica de tecido preto, deixando apenas ver os braços nus até aos
cotovelos e a ponta dos pés onde a vestimenta cai, redonda e larga, ondulando o
tecido e marcando os refolhos e as pregas que acompanham todo o corpo elegante
onde sobressai firme e altivo, mas sem presunção ou afectação, um rosto de fino
recorte e uma cabeça torneada onde os cabelos pretos puxados para trás deixam
adivinhar a travessa de marfim que os apanha e prende ao nível da nuca, sem
contudo deixar que eles rolem soltos ao vento, costas abaixo até atingir a
cintura fina e delicada.
Esta mulher parece ser a que o texto que se vai
reproduzir narra como sendo natural de Betânia, povoação perto de Jerusalém e
onde Jesus tinha muitos amigos e visitava muitas vezes, como aconteceu daquela
vez quando estava em casa de Simão, o leproso, e apareceu uma mulher que o
ungiu com nardo puro. (1)
É uma imagem que sugere, verdadeiramente a
pergunta: “Porque são belas as judias?
O texto que vamos reproduzir na íntegra e com
grafia actual é todo ele uma poesia tecida à mulher judia – assim considerada
desde todos os tempos - e bem merece pela compostura, talento, graça e
fidelidade aos costumes e à crença, uma leitura atenta.
Diz assim:
No ensaio
sobre a literatura inglesa, a propósito do belo retrato que Walter Scott faz do
romance Ivanhe, da judia Rebecca, diz Chateaubriand com aquela eloquência que a
sua pena imprimiu em tudo quanto nos deixou escrito:
Fontanes,
este amigo que eu chorarei eternamente, perguntou-me um dia porque era que na
raça judaica as mulheres eram mais belas que os homens: eu dei-lhe uma razão de
poeta e de cristão.
As
judias, disse eu, escaparam à maldição com que seus pais, seus maridos e seus
filhos foram fulminados. Não se encontra nenhuma judia envolvida na chusma de
sacerdotes e de povo que insultou o Filho do Homem, o flagelou, o coroou de
espinhos e lhe infligiu as dores e a ignomínea da Cruz.
As
mulheres da Judeia creram no Salvador, amaram-no, seguiram-no, protegeram-no,
consolaram-no nas suas aflições. Uma mulher de Betânia derramou sobre a sua
cabeça o nardo precioso que levava num vaso de alabastro; a pecadora aspergiu
um óleo perfumado sobre os seus pés e enxugou-os com os seus cabelos.
Cristo,
pelo seu lado, espalhou a sua misericórdia e a sua graça sobre as judias;
ressuscitou o filho da viúva de Naim e o irmão de Marta; curou a sogra de Simão
e a mulher que tocou a orla da sua túnica; para a samaritana foi uma “fonte de
água viva” e um jiíz compadecido para a mulher adúltera. As filhas de Jerusalém
choraram-no; as santas mulheres acompanharam-no ao Calvário, compraram bálsamo
e aromas e depois procuraram o seu sepulcro banhadas em lágrimas; a sua
primeira aparição foi a Maria Madalena. Ela não o reconhecia, mas Ele
disse-lhe: “Maria!”. Ao som desta voz os olhos de Madalena abriram-se e
respondeu: “Meu Senhor!”.
O reflexo
de algum raio divino ficou sempre resplandescendo sobre a fronte das judias.
É assim que termina o velho texto sobre o qual,
mais uma vez me debrucei nestas últimas férias, em P...........
E mais uma vez encontrei nele motivos de reflexão,
lembrando a Verónica que não vem referida no texto, mas é aquela judia que ao
assistir da sua janela à passagem do cortejo da Cruz, com Jesus à frente
carregado de injúrias e de suores, sai a correr de casa, tira o lenço da cabeça
e com ele enxuga a face de Jesus que nele ficou gravada para sempre, pagando o
Crucificado, desse modo, o gesto altruísta e temerário.
Após esta lembrança da mulher que teve a graça de
interromper por segundos o Calvário de Jesus, depus o velho “Almanaque de
Lembranças” na estante da minha casa de P.....
Lá ficou à espera de uma nova consulta e eu a
pensar sobre a razão porque são belas as judias e a juntar aos encanto da sua
beleza natural a beleza de sentimentos que tiveram com Jesus, que nunca
maltrataram, aos contrário dos homens, especialmente dos fariseus, saduceus e
zelotas, que tudo fizeram para o prender e matar.
Recordo sentidamente que no instante em que
arrumei o velho almanaque fiquei a pedir a Deus que num outro momento qualquer
eu viesse de novo a beber daquela cultura simples que me dá ainda hoje ao
preciosa publicação de cariz popular, bem melhor que certos livros rotulados de
muito saber e que nada dizem, senão no rótulo do seu lançamento sensacional,
fruto das modernas engenharias da informação mediática que não raro escondem um
embuste e são um engano para o leitor desprevenido.
(1) - Mc 14,3
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