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sexta-feira, 2 de maio de 2014

O sentido cristão de Camilo Castelo Branco




Camilo Castelo Branco viu publicar a primeira edição do livro HORAS DE PAZ em 1867.

Tinha então, 42 anos, uma idade madura que dá ao homem normal o atendimento a todas as questões, incluindo as metafísicas, o que nele, espírito aberto ao mundo e com uma produção literária já pujante, é motivo para nos prender, fazendo das leituras das HORAS DE PAZ um momento de reflexão se quisermos penetrar - como devemos fazer - no espirito do grande escritor que ele foi, até ao ano de 1890, quando o seu corpo pendeu exausto da vida.

No capítulo IX - intitulado FÉ - é assim que Camilo começa a expender com o brilhantismo que lhe conhecemos e com pureza da língua que fez dele um mestre:

Eu elevei a razão humana a um grau de pureza tal, que, reputando-a assim sublime, na generalidade dos homens, basta esse atributo para estabelecer a harmonia entre o Criador e a criatura.  Mas uma coisa é a razão alumiada pelo facho da consciência, e outra é a razão, que repugna ser alumiada. Perdido o equilíbrio entre uma e outra, isto é, confundidas as noções do bem e do mal, do crime e da virtude, a razão desce do trono em que a coloquei, e depõe a sua coroa no altar das paixões desordenadas. 

E no parágrafo seguinte, remata assim o fio do pensamento:

O homem actual é o testemunho insubornável da queda do primeiro homem. Nesta contínua luta em que se vê consigo próprio, é vitima do mal, enquanto a satisfação das suas necessidades está ao paladar dos seus apetites. (...)

Eu tiro o chapéu ao sentido cristão destas palavras, porquanto ao servir-me de Leon Tolstoi, fico a pensar que este outro grande mestre do pensamento parece ter bebido no livro de Camilo Castelo Branco - mormente no capitulo de onde retiramos os pequenos excertos que se reproduzem -  para nos dizer no seu livro ANA KARENINA, a beleza e a verdade destas palavras de onde se infere que a essência do homem não está, apenas na razão, se esta não tem o atributo de se pautar pelo sobrenatural, o que se percebe lendo Leon Tolstoi:

Que teria sido de mim, que teria sido da minha vida se não fossem essas crenças, se não soubesse que é preciso viver para Deus e não para as minhas necessidades? Teria roubado, teria matado, teria mentido. Nenhuma das principais alegrias da minha vida teria podido existir para mim". E por mais esforços mentais que fizesse, não conseguia ver-se a si próprio como o ser bestial que teria sido, caso não soubesse para que vivia. "Buscava resposta à minha pergunta. Mas o pensamento não me podia responder, pois o pensamento não pode medir-se com a pergunta. A própria vida se encarregou de me responder graças ao conhecimento do bem e do mal.

E esse conhecimento não o adquiri através de coisa alguma, foi-me outorgado, como a todos os demais, visto que o não pude encontrar em parte alguma. De onde o soube? Porventura foi através do raciocínio que eu cheguei à conclusão de que é preciso amar o próximo e não lhe fazer mal? Disseram-me na infância e acreditei-o com alegria, pois trazia-o na alma.(...)

Camilo Castelo Branco ao dizer que uma coisa é a razão alumiada pelo facho da consciência, e outra é a razão, que repugna ser alumiada, o que quis transmitir foi que, confundidas as noções do bem e do mal pelos que repugnam ser alumiados, deixam o caminho aberto para o não entendimento de como é preciso amar o próximo, como sustenta Leon Tolstoi, que tendo-o assumido como um bem, acreditou nele porque o trazia inscrito na alma, o que prova que é aí, sem ser preciso entrar em grandes lucubrações teológicas, que mora o infinito no finito do homem, onde a razão sem ter as asas da crença não consegue subir e perece quando o corpo se dobra, perdida a força que o animou, ou seja, a alma.

Ler as HORAS DE PAZ em tempos tão conturbados pela razão exacerbada de uma sociedade que está a perder o valor do sagrado, é dar à alma capacidades que sejam capazes de livrar o homem de uma luta que ele trava consigo mesmo e a si mesmo se faz vítima, enquanto nele durar a satisfação das suas necessidades sujeitas ao paladar dos seus apetites, como adverte Camilo.


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