Um pensamento que define o carácter de Ramalho Ortigão:
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Ramalho Ortigão ao tempo em que se deu o assassinato cobarde do rei D. Carlos exercia as funções de bibliotecário na Real Biblioteca da Ajuda, tendo escrito sobre aquela barbárie o livro D. Carlos o Martirizado e, logo após a implantação da I República, escreve a Teófilo Braga pedindo-lhe a demissão daquele cargo, informando-o de não desejar aderir àquela mudança de regime por não ser seu desejo engrossar o abjecto número de percevejos que de um buraco estou vendo nojosamente cobrir o leito da governação, rumando de seguida voluntariamente a Paris onde começou a escrever as "Últimas Farpas" contra o regime republicano, acção que continuou no seu regresso a Portugal em 1912.
É em 1914 que redige a célebre "Carta de um velho a um novo" tendo por destinatário João do Amaral, saudando a aparição do "Integralismo Lusitano"
in, "O Portal da História"
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Meu jovem camarada e amigo:
Pede-me V. um artigo para o seu jornal A Restauração. Esse
pedido eu o agradeço e me apresso a satisfazê-lo porque o considero um
testemunho de solidariedade e de simpatia prestado pela sua valorosa e
combativa geração, que é a geração dos meus netos, à encanecida e aposentada
geração a que eu pertenço.
A orientação mental da mocidade contemporânea comparada à
orientação dos rapazes do meu tempo estabelece entre as nossas respectivas
celebrações uma diferença de nível que desloca o eixo do respeito na sociedade
em que vivemos obrigando a elite dos velhos a inclinar-se rendidamente perante
a elite dos novos.
Em face da batalha de sentimentos e de ideias no conflito
português dos nossos dias entendo que à ala dos veteranos cabe o dever marcial
de apresentar as suas antigas armas a essa nova ,ala de namorados, que se não
batem já pelo perecível prestígio da sua dama mas pela beleza imortal da sua
convicção, e batem-se não em combate fortuito, de torneio de gala, mas em
pugnas regulares e sucessivas em que quotidianamente arriscam os seus
interesses, a sua liberdade e a sua vida os redactores dos modernos jornais
monárquicos e os de publicações periódicas de tão considerável importância
filosófica e educativa como a Lusitânia, a Nação Portuguesa, Aqui d'El-Rei, os
Cadernos de Mariotte, a Alma Portuguesa, a Crónica Política, a Entrevista, etc.
A incontestável superioridade dessa plêiade estudiosa
consiste em ter admiravelmente pressentido a necessidade culminante da
reeducação integral do povo português.
Combater apenas o analfabetismo do povo por meio de escolas
primárias e de escolas infantis sem religião e sem Deus, não é salvar uma
civilização, é derruí-la pela base por meio do pedantismo da incompetência, da
materialização dos sentimentos e do envenenamento das ideias. Quem ignora hoje
que foi a perseguição religiosa e o domínio mental da escola laica o que
retalhou e fraccionou em França a alma da nação? Quem é que nesse tão amado,
tão generoso e tão atribulado país não está vendo hoje objectivar-se
praticamente o profético aforismo de Le Bon: «É sobretudo depois de destruídos
os deuses que se reconhece a utilidade deles»!
Quanto é comovente e elucidativo comparar as nossas modernas
instituições com o quadro da evolução da terceira República francesa ainda há
pouco delineado por Paul Bourget, o
eminente pensador de quem disse Anatole: «Ele é o mais filósofo de todos nós».
«Como não cotejar – escrevia muito recentemente Bourget – o
programa da terceira República, idealizado por tantos patriotas sinceros, com o
quadro da nossa presente decadência! Um parlamento tão impotente como
desonrado; costumes públicos dia a dia mais degradados; a perseguição religiosa
alternativamente a mais brutal e a mais hipócrita; um corpo de mestres
envenenando as gerações novas, essa reserva viva do futuro, por meio de um
ensino de demissão colectiva e de nefasta utopia; o exército sistematicamente
corrompido pela política, humilhado em trabalhos de baixa política,
enfraquecido pelo sobrelanço eleitoral, a ponto de que os chefes mais
respeitados desaparecem para não serem cúmplices de um atentado contínuo contra
a defesa nacional; a guerra social incessantemente prestes a rebentar em
episódios sangrentos; a anarquia moral precedendo e anunciando a anarquia civil
e administrativa, cujos pródromos são sensíveis por toda a parte... Enfim, para
que prolongar este paralelo entre a República tal como ela funciona, como não
poderia deixar de funcionar; e a República tal como a sonharam os melhores dos
nossos antepassados?»
Em Portugal somos hoje um povo medonhamente deseducado pela
inepta pedagogia que nos intoxica desde o princípio do século XIX até os nossos
dias.
O Marquês de Pombal teve a previsão desta crise quando por
ocasião da expulsão dos jesuítas ele procurou explicar que o aniquilamento da
Companhia de Jesus não decapitaria a educação nacional porque os eruditos
padres da Congregação do Oratório vantajosamente substituiriam como educadores os jesuítas expulsos.
Com a influência intelectual dos oratorianos, introdutores
do espírito criticante de Port Royal na renovação da mentalidade portuguesa,
condisse realmente o advento de um dos mais brilhantes períodos da nossa
erudição.
Vieram, porém, mais tarde os revolucionários liberais de 34,
os quais condenaram, espoliaram e baniram os padres da Congregação do Oratório
como Pombal espoliara e banira os padres da Companhia de Jesus.
A obra liberal de 1834 – convém nunca o perder de vista –
foi inteiramente semelhante à obra republicana de 1910. Nos homens dessas duas
invasões é idêntico o espírito de violência, de anarquismo e de extorsão. Dá-se
todavia entre uns e outros uma considerável diferença de capacidade.
Os de 34, de que faziam parte Herculano, Garrett e
Castilho, eram espíritos oriundos da Academia da História, da livraria
das Necessidades e do colégio de S. Roque.
Tinham tido por mestres ou por companheiros de estudo homens
tais como António Caetano de Sousa, o
autor da História Genealógica; Barbosa
Machado, o autor da Biblioteca Lusitana;
Bluteau e os colaboradores do seu Vocabulário; Santa Rosa de Viterbo, o autor do
Elucidário; João Pedro Ribeiro, o admirável
erudito iniciador dos altos estudos da nossa história e precursor de Herculano;
António Caetano do Amaral, o infatigável investigador da História da Lusitânia;
D. Frei Caetano Brandão, seguramente o mais elevado espírito e a mais formosa
alma que deitou o século XVIII em Portugal; o padre Cenáculo, o mais prodigioso
semeador de bibliotecas; o padre António Pereira de Figueiredo, o autor do
famoso Método de Estudar; Félix de
Avelar Brotero, o insigne naturalista; o polígrafo abade Correia da Serra, e outros
que não menciono porque teria de reproduzir um copioso catálogo se quisesse dar
mais completa ideia do que foi a cultura portuguesa nessa fase da nossa
evolução literária.
Os novos revolucionários de 1910, com excepção honrosa dos
que não sabem ler, não tiveram por decuriões senão os seus predecessores
revolucionários liberais de 34. E daí para trás - o que quer dizer daí para
cima - nunca abriram um livro com medo da infecção clerical, porque todos eles
acreditam com fetichistico ardor que o clericalismo é o inimigo, segundo a
fórmula célebre com que o príncipe de Bismarck conseguiu sugestionar
Gambetta para a irremediável desmembramento moral da França.
Tal a razão por que os raros homens de letras que a nossa
República conseguiu mobilizar dia a dia se desagregam da hoste refugiando-se no
anacoretismo filosófico, enojados da crassa ignorância dos sarrafaçais a que
o regime os emparelhou. Como Nietzsche, perante a grosseira petulância da
Alemanha depois da hegemonia que lhe conferiu a vitória de 1870, os desiludidos
da República Portuguesa apetecem, como requeria Nietzsche, que se criem novos
ermitérios onde os homens que pensam se enclausurem e se separem para todo
sempre dos homens que governam.
Atolados há mais de um século no mais funesto dos ilogismos
políticos, esquecemo-nos de que a unidade nacional, a harmonia, a paz, a
felicidade e a força de um povo não têm por base senão o rigoroso e exacto
cumprimento colectivo dos deveres do cidadão perante a inviolabilidade sagrada
da família, que é a célula da sociedade; perante o culto da religião, que é a
alma ancestral da comunidade, e perante o culto da bandeira, que é o símbolo da
honra e da integridade da Pátria. Em pleno século XX, muito depois de
inteiramente refutada pela moderna crítica histórica a supersticiosa lenda da
Revolução Francesa, revolucionámo-nos nós para o fim de abolir todos esses
velhos deveres e de adoptar como um evangelho novo a estafada, ensanguentada e
enlameada Declaração dos Direitos do Homem, como se à frágil e efémera criatura
humana fosse lícito invocar qualquer espécie de direitos perante as leis
inexoráveis e eternas que implacavelmente regem toda a ordem universal! E para
o fim de pormos em plena evidência essa ilusão retórica aclamamos uma sexta
República nova dezenas de anos depois de sucessivamente abolidas as outras
cinco a cuja existência deu origem o extinto prestígio da Revolução, e das
quais nem sequer já sobrevivem os nomes. Quem se lembra hoje do que foram a
Batávica, a Cisalpina, a Ligúrica ou a Partenopeia?
Quebramos estouvadamente o fio da nossa missão histórica.
Desmoralizamo-nos, enxovalhamo-nos, desaportuguesamo-nos.
Pelos processos improvisados e caóticos em que vivemos
sucessivamente nos desenraizamos do torrão paterno, desandando e retrocedendo
da ordem ascendente e lógica de toda a evolução social, principiando por
substituir o interesse da Pátria pelo interesse do partido, depois o interesse
do partido pelo interesse do grupo e por fim o interesse do grupo pelo
interesse individual de cada um. É a marcha da dissolução marcha rapidíssima
para o aniquilamento, porque é inteiramente aplicável à vida social a lei
biológica de que toda a decomposição orgânica dá origem a seres parasitários
cuja função é acelerar e completar a decomposição.
Escrevo estas linhas em face da mais pavorosa onda de sangue
e de lágrimas que parece encapelar-se das profundidades do desconhecido para
subverter o mundo. Perante um tão descomunal conflito de violência e de força
parece-me indubitável que o desfecho da actual conflagração europeia não poderá
ser senão a refutação absoluta do dogma democrático da liberdade, da igualdade
e da fraternidade humana. A lição final da guerra será na humanidade assim como
o é na natureza o simples triunfo implacável do que pode mais sobre o que pode
menos.
Não nos precipitemos a amaldiçoar a brutalidade de um tal
destino enquanto não reflectirmos no que é realmente a força e de que natureza
são os tão complexos elementos integrados nesse fenómeno global.
De quantos vícios e de quantas farroncas se compõe uma
fraqueza? De quantas virtudes ignoradas e recônditas se constitui uma força
humana?
Bem exíguo, bem frágil, bem desacompanhado do mundo era o
pequeno Portugal que no espaço de cem anos, entre o século XV e o século XVI,
se assenhoreou no globo de um império territorial e marítimo consideravelmente
superior àquele a que aspira a hegemonia germânica dos nossos dias.
À ponta da espada Portugal submeteu nada menos de trinta e
três reinos, a que ditou a lei e que tornou tributários do seu soberano;
dilatou o domínio português às mais vastas regiões da Ásia e da América,
deixando ainda aos seus missionários e aos seus portadores de civilização
através do mundo o tempo e a serenidade precisa para concomitantemente escreverem
doze gramáticas e dezassete dicionários de línguas orientais até então
desconhecidas, além de muitas dezenas de obras. diversas, por meio das quais,
antes de mais ninguém, ele ensinou à Europa a geografia física e a geografia
política do Oriente e da África.
Porquê? Porque pelas virtudes guerreiras dos seus
navegadores e dos seus soldados, pelo saber dos seus letrados e dos seus
monges, pela disciplina do seu povo, pelo exemplo dos seus Reis no campo de
batalha, a Portugal coube então o privilégio desse direito que tanto nos
confrange quando exercido pelos outros – o direito da força.
Defenda-nos Deus por sua misericórdia da hora de perigo
nacional em que tenhamos de perguntar onde estão os descendentes e os
representantes dos antigos homens de Ourique, de Aljubarrota, de Ceuta e de
Diu.
Bem sei que nesse transe o actual Chefe do Estado será bastante competente para
desembainhar a sua espada de guerra e de justiça, abotoar a sua sobrecasaca de
comparecer e proclamar às tropas que, através da batalha, no caminho do dever e
da honra elas sigam os oito reflexos do seu mavórcio e reluzente chapéu
alto.
Presumo que S. Ex.ª é tão idoso como eu. Creio porém que
esta circunstância em nada alterará o belo gesto patriótico que confiadamente
espero do seu valor. Quando a Pátria chame às armas os seus filhos, que importa
a idade! Não são os mais ou menos breves dias que cada um tem para existir o
que a Pátria nos requer, é simplesmente a vida, a vida do indivíduo, que é da
raça e da nação que o criou, assim como a seiva da árvore é da terra .em que
vive.
De cabelos brancos – ruços, como diz Azurara – eram todos os
chefes militares da expedição de Ceuta. No Conselho que D. João I reuniu em
Torres Vedras para expor o seu plano de conquista, João Gomes da Silva, notando
que todas as cabeças eram brancas, exclamou: Quando eu, Senhor, não sei al que
diga senão – ruços além! O que equivalia a dizer: Avante os velhos!
E foi com esse entusiástico grito de guerra que se levantou
o Conselho.
Mais tarde, quando no Porto o Infante D. Henrique recebia os
contingentes da expedição, os batalhões dos besteiros com os seus anadéis, as
levas dos concelhos e as mesnadas dos fidalgos, apresentou-se-lhe, à frente dos
seus homens, o meu conterrâneo Aires Gonçalves de Figueiredo, que então contava
noventa anos de idade, e vestia as armas de ponto em branco, lança em punho,
cota resplandecente ao sol, pluma do elmo ondulando ao vento.
Notando o Infante a desproporção entre o cansaço dos seus
dias e o esforço do seu ânimo, Aires Gonçalves respondeu:
– Sei bem que estou mais para morrer que para batalhar, mas
fui companheiro de armas de El-Rei vosso pai e as exéquias que para mim mais
desejo são as de ter acabado combatendo ao seu lado.
Assim se passavam as coisas no tempo em que havia reis e
vassalos, ricos-homens, cavaleiros, peões e besteiros, prelados e monges,
mosteiros e solares, estradas com cruzeiros e igrejas com santos.
Não calculo bem como em análoga contingência as coisas
passariam hoje ou como passarão amanhã sob a égide de um governo aperfeiçoado,
em companhia dos seus senadores, dos seus deputados, dos seus ministros, dos
seus livres-pensadores, dos seus pedreiros-livres e da sua formiga branca.
E com esta incerteza me recolho ao meu buraco – in angello
cum libello. Adeus, meu amigo. Lembre-me afectuosamente a todos os seus
esforçados companheiros de luta e a todos comunique o estreito e comovido
abraço que lhe envia o seu dedicado confrade.
Cascais, 7 de Setembro de 1914.
in, "O Portal da História"
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Nesta carta escrita um ano antes da sua morte está bem patente o anti.republicanismo de Ramalho Ortigão, demonstrando deste modo sincero, de acordo com o seu pensamento, o quanto de repulsa social e intelectual lhe mereceu a República que ele viu nascer e sob a qual viveu os seus cinco últimos anos de vida, mantendo-se fiel ao pensamento que encima este apontamento.
Desejava ver o "homem novo", depois de ter abandonado o que lhe fora prometido por uma República incipiente e inculturada, dentro do Movimento sócio-político do Integralismo Lusitano prosseguido pelo jovem confrade a quem dirigiu esta carta, de cariz tradicionalista e monárquico, nascido por força dos dislates dos homens que não honraram como deviam a implantação da República, tendo a montante o sangue derramado no dia 1 de Fevereiro de 1908, do rei D. Carlos e de seu filho Luis Filipe, que é um labéu que jamais deverá ser esquecido.
Desejava ver o "homem novo", depois de ter abandonado o que lhe fora prometido por uma República incipiente e inculturada, dentro do Movimento sócio-político do Integralismo Lusitano prosseguido pelo jovem confrade a quem dirigiu esta carta, de cariz tradicionalista e monárquico, nascido por força dos dislates dos homens que não honraram como deviam a implantação da República, tendo a montante o sangue derramado no dia 1 de Fevereiro de 1908, do rei D. Carlos e de seu filho Luis Filipe, que é um labéu que jamais deverá ser esquecido.
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