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sexta-feira, 3 de novembro de 2017

A "Esfolhada" de "As Pupilas do Senhor Reitor, de Júlio Dinis


Tela de Roque Gameiro
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Passaram os meses de Setembro e Outubro em que, tradicionalmente, se fazem as esfolhadas - ou descamisadas - em que se procede à retirada das camisas louras que defendem as espiga do milho no tempo do seu amadurecimento e da canícula.

Como nenhum outro escritor português o tivera feito até então e até aos dias de hoje  tal não aconteceu, coube a Júlio Dinis no seu famoso e formosos romance "As Pupilas do Senhor Reitor", escrever esta cena deliciosa em que era - e ainda é - hábito, reunirem-se ao serão, nas aldeias portuguesas onde ainda restam as esfolhadas, todos os seus habitantes, trocando entre si mesmos estes serões de ajuda comunitária que são sempre um motivo de festa, e onde cada um dos circunstantes anseia ser o primeiro a encontrar a espiga de milho vermelho a que ancestralmente se dá o nome de "milho-rei."

Júlio Dinis relata esta festa popular no Cap. XXIX. começando por dizer: A esfolhada fez-se na eira espaçosa e desafogada de José das Dornas, - pai do Pedro e do Daniel,que era como ele o descreve a abrir o romance - um lavrador abastado, sadio e de uma tão feliz disposição de gênio, que tudo levava a rir; mas desse rir natural, sincero e despreocupado, que lhe fazia bem, e não do rir dos Demócritos de todos os tempos - rir céptico, forçado, desconsolador, que é mil vezes pior do que o chorar - terminando a descrição da esfolhada depois de a situar, afirmando que ela se fez numa - formosíssima noite de luar claro como o dia. O ser alumiado pelo luar é uma circunstância que redobra o valor da festa.

Foi no seu decorrer que irrompeu o grito alegre: 
- Milho rei! milho rei! milho rei!
E a pena de Júlio Dinis, cheia do colorido dos campos do norte de Portugal que ele pintou e enalteceu primorosamente descreve assim aquela cena que pôs em alvoroço todo o arraial:
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Aquele grito partira de José das Dornas, que fora o primeiro a cujas mãos concedera a sorte, enfim, uma espiga vermelha.
A festa mudou súbita e completamente de caracter.
À exclamação do lavrador respondeu grande alarido na assembleia. De todos os lados se pedia o cumprimento da lei da esfolhadas. Cabia pois a José das Dornas fazer a primeira distribuição de abraços.
O alegre lavrador não se fez rogar.
Seguiu-se então um espectáculo iminentemente cómico. José das Dornas ergueu-se do lugar onde estava para correr um por um, todos os outros, e, com profusão de abraços, dar o exemplo de observância à lei reguladora da festa.
Todo este cerimonial foi acompanhado das gargalhadas dos espectadores, e entremeado de observações jocosas do oficiante, o qual fazia valer sobremaneira o ato, graças ao génio folgazão que Deus lhe dera.
A cada rapariga que abraçava, José das Dornas, prolongando mais o abraço, dizia com visagens e gestos, que faziam estalar de riso os circunstantes.
— Na minha idade, aos sessenta anos, só o milho rei me podia dar destas fortunas! Ainda bem que a sorte mo trouxe às mãos.
Ao abraçar os homens, exclamava ele, com certo ar de desconsolação, comicamente expressivo.
— Que belo abraço desperdicei agora!
Passando pelos filhos, abraçou-os também, dizendo-lhes:
— Rapazes, tenham paciência. Eu sei que são destes abraços que vós quereis. Mas é lei, é lei. Os outros virão a seu tempo.
A um criado disse, meneando a cabeça:
— Ah! maroto! Ser obrigado a abraçar-te, quando tanta vontade tinha de te apalpar de outra maneira as costas! Ora vá, que talvez te não gabes de outra.

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Admirável Júlio Dinis.

Ele foi o escritor da minha adolescência, tendo lido toda a sua obra e guardando-a até aos dias de hoje e onde vou de vez em quando - num ou noutro dos seus livros - beber na sua linguagem serena o bucolismo que hoje nos falta e, ainda, que possa parecer fora do tempo - asserção que eu entendo - custa-me no entanto a entender a sua perda cultural, porque muito do genuíno Portugal está plasmado, quer seja nas páginas, como a que acima ficou, como seja nas de "Os Fidalgos da Casa Mourisca" ou da "Morgadinha dos Canaviais", bem como em "Os Serões da Província", onde o estilo inconfundível do escritor uma marca indelével da sua arte.

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