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domingo, 23 de novembro de 2014

O Drama do Calvário continuará vivo para sempre!



O Descimento da Cruz

in, "Revista Municipal" nº 46 - 3º trimestre de 1950
Acervo do Museu das Janelas Verdes



Quase nenhum dos grandes Poetas portugueses e estrangeiros deixou sem afinar, num dia qualquer, o seu estro no Grande Sacrificado da Cruz, porque todo o seu itinerário, divino para os crentes que vêem n' Ele o culminar das profecias desde Isaías (809 - 689) a. C.) a Miqueias (757-698 a. C.) - para citar apenas estes dois - que desde tempos imemoriais anunciaram o nascimento de Jesus-Filho de Deus, sua Paixão e Morte Dolorosa, até aos que, não o sendo, respeitam o Homem e a sua peregrinação de caminhante exemplar, singularmente empenhado com o seu semelhante, seu irmão espiritual, pelo poder pela graça de Deus que Ele incarnou.

No quadro "O Descimento da Cruz" em que as figuras são apresentadas de rostos contrictos a serenidade do Senhor Morto depois do atroz sofrimento a que os verdugos O sujeitaram contrasta com o aspecto das restantes, incrédulas por tudo quanto lhe  acontecera, sem cuidarem, que só Ele sabia do que lhe havia de suceder logo após aquela última visita a Jerusalém.

No nosso panorama literário, Sebastião  da Gama, fez de Cristo no seu livro "Cabo da Boa Esperança" um retrato, possivelmente dos mais belos da poesia portuguesa, não tanto pela abordagem que faz do drama do Calvário, mas por tudo o que deixa de um modo lúcido e perfeitamente dirigido à meditação que é preciso fazer de tudo quanto ali aconteceu e  deve interrogar cada um de nós.

Eis o que nos diz o Poeta:


CRISTO

Á  minha cabeceira o Cristo morre
de puro dó. Silenciosamente,
da cabeça caída para a frente
um fio de sangue, ainda vivi, escorre.

Puseram-m'O ali como um remorso.
Não quiseram matá-lo de uma vez,
p'ra m'O porem ali como um remorso.
Tem os olhos abertos. Tristes...., tristes...
E a Sua boca quase que me fala,
como quem repreende meigamente.

Quando me vou deitar, já nem O olho.
Apago a minha vela bruscamente,
p'ra não ver os Seus olhos que me doem
como um remorso antigo.

Por que não ficou morto no Calvário,
apodrecendo aos Astros indiferentes?
Por que veio acabar para o meu quarto,
com estes olhos suaves que me acusam,
com estes lábios tristes que me pedem
que O não deixe morrer tão sem razão?

Tem quase dois mil anos o meu quarto.
E em mais de mil das noites destes anos
eu apaguei a vela p'ra não ver
a agonia do Cristo, que me acusa.

Mas Ele rasga a escuridão da Noite.
Mas Ele rasga o sono em que me oculto
e vem, solto da cruz a que o prendi,
continuar, no fundo da minh'alma
Seu estertor.
Seus olhos brilham mais, na escuridão...
P'ra de todo morrer,
como que espera apenas o segundo
de eu Lhe pedir perdão.


Nota: Poema incluso no livro: "Poesia e Teologia" 
de Cón. António de Azevedo Pires


             

O poema de Sebastião da Gama é, efectivamente, uma profunda meditação do homem de hoje, mas que, com o mesmo sentido cristológico a vai buscar a todos os homens que se sucederam nas gerações pós-Cristo, porquanto Ele, ressuscitado, não deixa de incomodar as consciências que revêem as suas atitudes - nem sempre consonantes com o Grande Sacrificado - razão que levou o Poeta a declarar, que Ele morre à sua cabeceira, a ponto de o levar a dizer - Tem quase dois mil anos o meu quarto - e em todas as noites - dos tais dois mil anos - é bruscamente que apaga a vela para não ver os olhos do Cristo que continua vivo a rasgar a solidão da Noite...

Não deixa de ser sintomático que no quadro "O Descimento da Cruz" o rosto de Cristo Morto pareça o mais vivo de todos, porque Ele assim ficou e assim continua para o entendermos e seguirmos, o que levou Sebastião da Gama a deixar no ar a pergunta inquietante: Por que não ficou morto no Calvário?

Pela simples razão e o Poeta bem a sabia - que O Cristo que havia à sua cabeceira fazia que o seu quarto - como o quarto de todos nós -  tenha quase dois mil anos, porque Ele está vivo para nos fazer sentir como um remorso o facto de assim, nem sempre O não sentirmos.

É este remorso que levou o Poeta - como ele confessa - a apagar bruscamente a vela do seu quarto para não ver a agonia de Cristo, para nos deixar um alerta de quanto é preciso, para bem do homem colectivo não negar mas viver tudo o que Ele nos deixou de amor por todos os homens, um motivo ponderoso por que Ele continuará para todo o sempre a rasgar a escuridão da Noite e o sono onde se ocultam os indiferentes a quem Ele quer e deseja dar o seu perdão!


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