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sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Miradouro de Santa Luzia



in, "Revista Municipal" nº 32 - 1º trimestre de 1947


Muitas vezes, na minha juventude, no decorrer dos meus passeios àlacres que me levavam ao conhecimento a que me sentia obrigado sobre a Cidade de Lisboa, parei embevecido no Miradouro de Santa Luzia que o feliz artista desenhou e acima com a devida vénia se reproduz, para olhar demoradamente os telhados de Alfama, onde avultava a Igreja de Santo Estêvão e em fundo, as águas do Tejo e as velhas fragatas que ainda haviam, deslizando mansas ao sopro da brisa a caminho de um qualquer dos cais que as esperavam para a carga ou para o transbordo.

Recordo, um dia - que foi dos tais que só se vive uma vez, porque nunca mais tive o prazer de viver e já o não viverei, nunca mais - ter encontrado ali, sentado num dos bancos então, como hoje, implantados bem juntos da amurada daquele navio parado, uma personagem singular que recitava, com os olhos fixos na Igreja de Santo Estêvão, a letra lindíssima de um fado que lhe foi dedicado e estava em voga, naquele recuado tempo.

A letra como uma recordação daquele momento, fica aqui e, por certo, vai fazer recordar algumas memórias adormecidas.


Igreja de Santo Estêvão


Na igreja de Santo Estêvão
Junto ao cruzeiro do adro
Houve em tempos guitarradas.
Não há pincéis que descrevam
Aquele soberbo quadro
Dessas noites bem passadas.

Mal que batiam trindades
Reunia a fadistagem
No adro da santa igreja.
Fadistas, quantas saudades
Da velha camaradagem
Que já não há quem a veja.

Santo Estêvão, padroeiro
Desse recanto de Alfama
Faz um milagre sagrado.
Que voltem ao teu cruzeiro
Esses fadistas de fama
Que sabem cantar o fado.


É de toda a justiça que se diga que é autor da letra o poeta Gabriel de Oliveira, da música, Joaquim Campos, sendo o fado dedilhado com os acordes da "fado Vitória", pertencendo aquele laudatório trecho musical ao repertório de Fernando Maurício, que o celebrizou.

Hoje, que graças às novas tecnologias mantenho com prazer espiritual o meu "blog" a que chamei "MIRADOURO" declaro que o seu nome foi beber por inteiro àquele local de Lisboa e, que, o pequeno texto que lhe vai em rodapé, escrito na data da sua publicação e que, textualmente se exprime deste modo, reflecte, com verdade um sentimento que sinto de alguma desilusão de um mundo que se virou contra algo que perante o meu pensar de jovem é um sonho desfeito e no de adulto, é uma realidade imposta e contra a qual com as fracas armas que tenho jamais deixarei de lutar com a lealdade de normas e princípios morais que trago intactos desde os tempos em que, olhava o casario de Alfama, a partir daquele lugar privilegiado da Cidade de Lisboa.

Eis o texto:

Daqui - do Miradouro de Santa Luzia - vejo um pedaço do mundo e se o vejo desajeitado, sofrendo a mágoa duma realidade melhor que desejei, estou   consciente de não ter sido um destruidor assumido, embora admita a omissão de o não ter ajudado a erguer como devia, sugerindo estas afirmações que os dois modos contrários do meu agir reflectem a minha desatenção humana, dando-me a certeza que a ela só escapam os homens fadados para destinos superiores.

Foi, ainda, pensado e escrito, com o meu olhar e  sentimento já não de jovem, mas de um homem a descer a curva da vida, com o pensamento no Miradouro de Santa Luzia, donde, efectivamente, se vê um "pedaço do mundo", tendo alguma amargura de o ver "desajeitado", possivelmente, sendo meu o defeito de o ver assim, mas tendo consciência das minhas omissões no que concerne ao dever ter feito mais e melhor, mas deixando de pé a única certeza que tenho, como como sequência natural dos meus efeitos humanos, ao declarar que a esses defeitos "só escapam os homens fadados para destinos superiores".

Declaro, que a virtude de ter sido mais perfeito escapou-me sempre ao longo da vida que já vai longa, sem contudo, me tirar o prazer de voltar, ainda hoje, de vez em quando ao Miradouro de Santa Luzia, onde ecoa, ainda, nos meus sentidos a  voz do antigo declamador do célebre fado: Igreja de Santo Estêvão.

Olho o banco onde o encontrei e, mentalmente, refaço a cena e iludo os meus sentidos!


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