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segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Pietá: Um poema de Miguel Torga




Pietá

Vejo-te ainda, Mãe, de olhar parado,
Da pedra e da tristeza, no teu canto,
Comigo ao colo, morto e nu, gelado,
Embrulhado nas dobras do teu manto.

Sobre o golpe sem fundo do meu lado
Ia caindo o rio do teu pranto;
E o meu corpo pasmava, amortalhado,
De um rio amargo que adoçava tanto.

Depois, a noite de uma outra vida
Veio descendo lenta, apetecida
Pela terra-polar de que me fiz;

Mas o teu pranto, pela noite além,
Seiva do mundo, ia caindo, Mãe,
Na sepultura fria da raiz.

Miguel Torga
                                                               in, Poesia Completa, vol. I


Este poema de Miguel Torga é uma prova que todos os homens que passam a vida a interrogar Deus - um sinal que dão d'Ele não lhes ser indiferente - perante o Mistério da vida que assume naqueles que O procuram o maior relevo, têm como resposta eloquente à sua interrogação esta famosa estátua de Miguel Ângelo.

Se observarmos atentamente as duas figuras magistralmente cinzeladas, chamam a nossa atenção para o rosto sereno da "Virgem Mãe, filha do teu Filho" - como Dante a chamou (Paraíso XXXIII, 1-2) e na figura de Cristo, o que se vê, não é uma representação da morte, mas antes a fisionomia de Alguém que deposto da Cruz, havia serenamente adormecido num regresso às Origens de onde viera e onde sempre estivera presente desde o primeiro arrebol dos Tempos.

Miguel Ângelo com o seu cinzel foi o grande intérprete do Grande Mistério.

Miguel Torga foi um peregrino desse Grande Mistério e há neste Poema em que o Poeta se transforma, e como se fosse Jesus dirigi-se â Mãe - à doce "Pietá" - estando no colo dela e sem esquecer a "chaga do lado" que o soldado romano lhe desferiu no peito, ele "vê" que os olhos de - Nossa Senhora - ao fitar a ferida do seu corpo, é sobre ela que cai o seu pranto e, depois a noite de uma outra vida  desceu lenta enquanto Jesus caminhava, solto da sua finitude temporal a caminho da Eternidade, onde viverá por todos os tempos, na tal noite de uma outra vida em que, aos poucos, para aqueles que encontram depois da noite da procura, ser a Luz sem ocaso.

Conhecendo o perfil do Poeta e a sua procura de Deus, este belo soneto se não é uma confissão do encontro, é, seguramente, um testemunho da fidelidade de Miguel Torga aos princípios bebidos na sua terra transmontana, para nos deixar dito - sem disfarces - que o pranto de Nossa Senhora - seiva do mundo - caía na sepultura fria da raiz, ou seja, na sepultura fria da sua própria raiz que nunca soube como aquecê-la, parecendo, contudo, que esta "Pietá" foi, com toda a certeza, um momento em que o seu nobre coração se sentiu aquecido pelo influxo espiritual em que a Mãe Dolorosa perpassou, santa e doloridamente na mente formidável deste homem de génio que nos deve merecer todo o respeito pela sua humanidade e, também, pelos momentos de literatura que nos legou, da melhor que se escreveu em Portugal.


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