Há na Obra poética de Guerra Junqueiro um poema que sempre me emocionou de todas as vezes que o leio, e a que ele chamou - ORAÇÃO AO PÃO - porque o seu lirismo profundo de raiz eclesial não nos passa desapercebido.
Tendo sido escrito quando o grande Poeta tinha 43 anos e já havia passado muito do fulgor retumbante anti-clerical da sua juventude - de cujo cariz, muitos pensam, como eu, ter tido peso político no derrube da Monarquia - na ORAÇÃO AO PÃO quando Guerra Junqueiro nos fala do sofrimento do trigo, a começar no eirado sob o impulso dos malhos até ser triturado pelas mós do moinho - Ó pedras do moinho, mal sabeis / O que fazeis - há neste sofrimento do trigo para se transformar no pão que comemos, similitudes com o sofrimento de Cristo, que como é sabido, com a sua Morte nos deixou o Pão eucarístico como alimento para a fé dos seus seguidores.
O poema é longo, mas ao bendizer o trigo morto para nos dar o pão que comemos no fim da primeira parte, Guerra Junqueiro acaba-a da seguinte maneira:
Bendito sejas,
Trigo morto, cadáver fecundante,
Ressuscitado e nós a cada instante!
Bendito sejas,
Bendito sejas,
Bendito sejas,
Trigo! corpo de Deus – Pureza e Dor –
Nossa vítima e nosso redentor.
O último retrato do Poeta
in, "Obras de Guerra Junqueiro"
1972 - Lello & Irmão - Editores
Oração ao Pão
Num grão de trigo habita
Alma infinita.
Alma latente, incerta, obscura,
Mas que geme, que ri, que sonha,
que murmura...
Quando a seara é ceifada, acaso o
grão
Terá dor? Por que não?!
Um grão de trigo,
Mil anos morto num jazigo,
Dêem-lhe terra e luz,
E ei-lo, germina e cresce e
floresce e produz.
Vêde lá, vede lá,
Quanto no eirado o trigo sofrerá!
Pelo malho batido num terreiro,
Um dia inteiro!
E um dia inteiro, sem piedade,
Coitadinho! rodado pela grade!
Depois a tulha celular,
A escuridão sem ar!
Depois, depois, ó negra sorte!
Entre rochedos triturado até à
morte!
Ó pedras dos moinhos, mal sabeis
O mal que fazeis!
Quantos milhões de crimes por
minuto,
Pedras de coração ferrenho e
bruto!
E as águas da levada vão cantando,
Enquanto as pedras duras vão
matando!
E a moleirinha alegre também
canta,
E ri a água, e ri o sol, e ri a
planta!...
Enfarinhada, branca moleirinha,
É pó de cemitério essa farinha!...
Loiro trigo a expirar por nosso
bem,
Sem um ai de ninguém!
Loiro trigo inocente,
Cuja morte horrorosa ninguém
sente!
E é por isso que ao fim do teu
martírio
És cor de Lua, és cor de neve, és
cor de lírio...
Bendito sejas!
Simples por nós viveste,
Puro por nós sofreste,
Mártir por nós morreste!
Bendito sejas!
Bendito sejas,
Trigo morto, cadáver fecundante,
Ressuscitado e nós a cada
instante!
Bendito sejas,
Bendito sejas,
Bendito sejas,
Trigo! corpo de Deus – Pureza e
Dor –
Nossa vítima e nosso redentor.
Gravura de Álvaro Franco
in, um Livro do autor do "blog"
Bendito sejas,
Bendito sejas,
Bendito sejas,
Trigo! corpo de Deus – Pureza e Dor –
Nossa vítima e nosso redentor.
Efectivamente, lendo o Antigo Testamento, mesmo antes da lei mosaica, encontramos um relato do rei de Salém, Melquisedec (Gn 14,18-19) que nos diz que este trouxe pão e vinho e, como era sacerdote do Deus Altíssimo, abençoou Abraão, dizendo: «Bendito seja Abraão pelo Deus Altíssimo que criou os céus e a Terra!
O pão servido a Abraão significou duas coisas: o sacrifício corporal por ser dele que se obtinha o alimento principal e a vida espiritual por vir a ser num dia, que só o Deus Altíssimo sabia, o alimento recebido pela hóstia eucarística e que já morava - pelo sofrimento de Jesus Cristo - nos desígnios insondáveis ao homem, mas presentes no Mistério que a razão jamais descobrirá, porque a sua descoberta só a faz o poder da fé que levou, um dia o Apóstolo S. Mateus a sentenciar a frase - de que o partir do pão físico da imagem e acima reproduzida pode servir de exemplo - Bem aventurados os construtores da paz, porque serão chamados filhos de Deus.
Esta frase fica aqui, de propósito, porque tenho a certeza que Guerra Junqueiro na ORAÇÃO AO PÃO estava, no mínimo, reconciliado consigo mesmo, gozando de alguma paz e, possivelmente - como assevera João Grave - repeso de algumas setas envenenadas que na sua juventude lançou contra Deus, o que prova que na vida dos homens há sempre, num dia qualquer, um momento de paz e de encontro com o Mistério do
Loiro trigo a expirar por nosso bem,
Sem um ai de ninguém!
Loiro trigo inocente,
Cuja morte horrorosa ninguém sente!
E é por isso que ao fim do teu martírio
És cor de Lua, és cor de neve, és cor de lírio...
Bendito sejas!
É uma imagem poética.
Mas diz muito para quem a queira entender em toda a sua profundidade mística.
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