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quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

INVENTÁRIO - Um poema de Miguel Torga




INVENTÁRIO

E, apesar de tudo, sou ainda o Homem,
Um bípede com fala e sentimentos!
Ao cabo de misérias e tormentos,
Continua
A ser a minha imagem que flutua
Na podridão dos charcos luarentos!

Sou eu ainda a grande maravilha
Que se mostra ao mundo!
O negro abismo que tem lá no fundo
Um regato a correr:
Uma risca de céu e de frescura
Que murmura
A ver se alguma boca a quer beber.

Quando o grave silêncio da paisagem
Me renega e protesta,
Pouco importa na festa
Deste encontro feliz;
Obra de Arcanjo ou de Satanás,
Eu é que fui capaz
De fazer o que fiz!

Podia ser melhor o meu destino,
Ter o sol mais aberto em cada mão…
Mas, Adão,
Dei o que a argila deu.
E, corpo e alma de degradação.
O milagre é que o Homem não morreu!

Não! Não me queiram na cova que não tenho,
Porque eu vivo, e respiro, e acredito!
Sou eu que canto ainda e que palpito
No meu canto!
Sou eu que na pureza do meu grito
Me levanto!

in, “Cântico do Homem!” (1950)


Não sei dizer quantas vezes li e meditei este poema de Miguel Torga, e também não sei dizer quantas vezes me encantei de ver escrita a palavra homem, com "H" grande e das vezes que me interroguei que todos os homens, obras de - Arcanjo ou Satanás deviam a si mesmos chamar-se homens com "H" grande - porque foi para isso que os seus destinos foram criados.

Miguel Torga, foi um deísta interrogador e a quem faltou aceitar o milagre da Revelação, mas isso não o impediu de se centrar com Deus e a si mesmo se chamar de Adão - aquele que deu o que a argila deu - e é, por isso, que este seu INVENTÁRIO é um poema de análise do Homem que ele foi, porque,

Não! Não me queiram na cova que não tenho,
Porque eu vivo, e respiro, e acredito!
Sou eu que canto ainda e que palpito
No meu canto!
Sou eu que na pureza do meu grito
Me levanto!

Efectivamente, Miguel Torga, foi um daqueles Homens que sempre por si mesmos se levantaram, libertos politicamente e de escolas literárias e é por assim se sentir que ele, no "Diário V" diz de si mesmo: O poeta e o artista podem morar juntos na mesma casa, mas o poeta há-de ser sempre o senhor. É uma aristocracia de origem divina ao lado duma nobreza feita a pulso.

É neste tipo de aristocracia de origem divina onde, de todas as vezes que leio o que ele escreveu - seja em prosa ou verso - sempre encontro o Homem e nele a origem divina que nunca renegou, porque, pelo seu percurso de vida, todos podemos ter a certeza que o Poeta que houve nele se levanta e continua a viver... e é assim, porque, o milagre é que o Homem não morreu... como ele diz num dos seus versos!

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