INVENTÁRIO
E, apesar de tudo, sou ainda o
Homem,
Um bípede com fala e
sentimentos!
Ao cabo de misérias e
tormentos,
Continua
A ser a minha imagem que flutua
Na podridão dos charcos
luarentos!
Sou eu ainda a grande maravilha
Que se mostra ao mundo!
O negro abismo que tem lá no
fundo
Um regato a correr:
Uma risca de céu e de frescura
Que murmura
A ver se alguma boca a quer
beber.
Quando o grave silêncio da
paisagem
Me renega e protesta,
Pouco importa na festa
Deste encontro feliz;
Obra de Arcanjo ou de Satanás,
Eu é que fui capaz
De fazer o que fiz!
Podia ser melhor o meu destino,
Ter o sol mais aberto em cada
mão…
Mas, Adão,
Dei o que a argila deu.
E, corpo e alma de degradação.
O milagre é que o Homem não
morreu!
Não! Não me queiram na cova que
não tenho,
Porque eu vivo, e respiro, e
acredito!
Sou eu que canto ainda e que
palpito
No meu canto!
Sou eu que na pureza do meu
grito
Me levanto!
in, “Cântico do Homem!” (1950)
Não sei dizer quantas vezes li e meditei este poema de
Miguel Torga, e também não sei dizer quantas vezes me encantei de ver escrita a
palavra homem, com "H" grande e das vezes que me interroguei que
todos os homens, obras de - Arcanjo ou Satanás deviam a si mesmos chamar-se
homens com "H" grande - porque foi para isso que os seus destinos
foram criados.
Miguel Torga, foi um deísta interrogador e a quem faltou
aceitar o milagre da Revelação, mas isso não o impediu de se centrar com Deus e
a si mesmo se chamar de Adão - aquele que deu o que a argila deu - e é, por
isso, que este seu INVENTÁRIO é um poema de análise do Homem que ele foi,
porque,
Não! Não me queiram na cova que
não tenho,
Porque eu vivo, e respiro, e
acredito!
Sou eu que canto ainda e que
palpito
No meu canto!
Sou eu que na pureza do meu
grito
Me levanto!
Efectivamente, Miguel Torga, foi um daqueles Homens que
sempre por si mesmos se levantaram, libertos politicamente e de escolas
literárias e é por assim se sentir que ele, no "Diário V" diz de si
mesmo: O poeta e o artista podem morar juntos na mesma casa, mas o poeta há-de
ser sempre o senhor. É uma aristocracia de origem divina ao lado duma nobreza
feita a pulso.
É neste tipo de aristocracia de origem divina onde, de todas
as vezes que leio o que ele escreveu - seja em prosa ou verso - sempre encontro
o Homem e nele a origem divina que nunca renegou, porque, pelo seu percurso de
vida, todos podemos ter a certeza que o Poeta que houve nele se levanta e
continua a viver... e é assim, porque, o milagre é que o Homem não morreu...
como ele diz num dos seus versos!
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