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quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

"A Poesia" - Um poema de Miguel Torga


A POESIA

Vou de comboio…
Vou
Mecanizado e duro como sou
Neste dia;
- E mesmo assim tu vens, tu me visitas!
Tu ranges nestes ferros e palpitas
Dentro de mim, Poesia!

Vão homens a meu lado distraídos
Da sua condição de almas penadas;
Vão outros à janela. diluídos
Nas paisagens passadas…
E porque hei-de ter eu nos meus sentidos
As tuas formas brancas e seladas?

Os campos, imprecisos, nos meus olhos,
Vão de braços abertos às montanhas;
O mar protesta contra não sei quê;
E eu, movido por ti, por tuas manhas,
A sonhar um painel que se não vê!

Porque me tocas? Porque me destinas
Este cilício vivo de cantar?
Porque hei-de eu padecer e ter matinas
Sem sequer acordar?

Porque há-de a tua voz chamar a estrela
Onde descansa e dorme a minha lira?
Que razão te dei eu
Para que a um gesto teu
A harmonia me fira?

Poeta sou e a ti me escravizei,
Incapaz de fugir ao meu destino.
Mas, se todo me dei,
Porque não há-de haver na tua lei
O lugar de menino
Que a fazer versos e a crescer fiquei?

Tanto me apetecia agora ser
Alguém que não cantasse nem sentisse!
Alguém que visse padecer
E não visse…
Alguém que fosse pelo dia fora
Neutro como um rapaz
Que come e bebe a cada hora
Sem saber o que faz…

Alguém que não tivesse sentimentos,
Pressentimentos,
E coisas de escrever e de exprimir…
Alguém que se deitasse
No banco mais comprido que vagasse
E pudesse dormir…

Mas eu se que não posso.
Sei que sou todo vosso,
Ritmos, imagens emoções!
Sei que serve quem ama
E que eu jurei amor à minha dama,
A mágica senhora das paixões.

Musa bela, terrível e sagrada,
Imaculada Deusa do condão:
Aqui vou de longada;
Mas aqui estou, e aqui serás louvada,
Se aqui mesmo me obriga a tua mão!

Miguel Torga
in, “Odes”(1946)



Este hino de amor à Poesia, belo e extenso, escrito ao sabor do andamento do comboio onde ia embarcado, Miguel Torga faz muitas perguntas ao destino que o fadou Poeta -  e dos maiores da Língua Portuguesa - mas de todas elas a que mais profundamente tocou a minha sensibilidade foi aquele seu desejo de se poder transmutar e esquecer que levava dentro dele um destino a que não podia fugir... 


Tanto me apetecia agora ser
Alguém que não cantasse nem sentisse!
Alguém que visse padecer
E não visse…
Alguém que fosse pelo dia fora
Neutro como um rapaz
Que come e bebe a cada hora
Sem saber o que faz…

Alguém que não tivesse sentimentos,
Pressentimentos,
E coisas de escrever e de exprimir…
Alguém que se deitasse
No banco mais comprido que vagasse

E pudesse dormir…

Quantas vezes ao longo da minha vida - que já não é breve - eu tenho tido desejos de me abandonar a um estado - que não sendo o do meu fado - nele me pudesse sentir mais liberto e tivesse vontade sem respeitos humanos de me deitar nas muitas viagens que já fiz de comboio no banco mais comprido que vagasse, sem cuidar que a minha postura era uma falta de respeito pelos meus companheiros de viagem de iam de pé, vendo-me dormir... e tivessem pena de ma acordar!

Quantas vezes ao longo da minha vida me tem assaltado a pergunta de Miguel Torga - sem eu ser Poeta que se veja - mas noutros assuntos em que a vida se tem ido desenrolando, e pergunto à estrela que guia o meu destino:

                                                   Porque há-de a tua voz chamar a estrela
Onde descansa e dorme a minha lira?
Que razão te dei eu
Para que a um gesto teu
A harmonia me fira?

- Que razão te dei eu?

E a resposta é simples: a única razão que eu dou à vida para que eu continue a levar a "água ao meu moinho" é que, entendo como um dever sagrado - pelo facto de ser responsável perante os meus actos, de nunca me ter deitado no banco mais comprido que vagasse, porque no comboio da vida, eu sei, só posso - e devo - ocupar o meu lugar... e não tirar, para minha comodidade o lugar do outro.

Compreendo, assim, o desejo de Miguel Torga de tanto lhe ter apetecido deitar-se no banco mais comprido que vagasse do comboio onde ia embarcado e por entre os solavancos do qual pensou e alinhavou estes versos - que são um quadro de viagem - que depois compôs maravilhosamente no silêncio do seu escritório tansmontano de S. Martinho de Anta, ou - quem sabe? - num qualquer momento de intervalo das suas consultas de medicina.

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