Meu querido
João de Barros.
Vou
escrever-te sobre o assunto duma das tuas publicações que entre as que tens
de incontestável valor - me parece a única má impropria do teu belo talento.
Farei uma ligeira apreciação sob o ponto de vista artístico e moral.
E tu, se
julgares esta carta digna de publicidade, dá-lhe o ultimo lugar no primeiro
numero da tua revista.
Aqueles
versos À Virgem, que o ano passado publicaste em folheto, achei-os tão fora de propósito
como se algum aparecesse, fosse onde fosse, a dizer que o Adamastor não é mais que
o cabo tormentório, uma rocha enorme sobre o mar. Deram-me a impressão de que
tivesses erguido os braços para oco no intento de encobrir uma estrela, ou de
que, numa antipatia arrebatadora , num impulso antiartístico, pretendesses
rasgar um quadro antigo, uma tela preciosa, sem pensar um só instante em suster
a mão ... que traçou estas palavras :
"Já não és nada que mereça
culto,
Tens a aparência velha e
adormecida".
Ora eu que admiro com entusiasmo a tua alma de poeta; eu que sei bem quanta razão tens em querer que a luz, que ilumina o cérebro, se não desperdice cm fantasias inúteis e prejudiciais, compreendi-te; mas fiquei triste !
Quem possuem,
como tu, um sem numero de poesias de elevadíssima grandeza moral, tem feita a
sua profissão de fé. E ali, nalguns versos, pareceste-me um apóstata da
Arte!
A imagem é
uma necessidade do espírito. Se não dermos aspecto, forma plástica às nossas
ideias, estas serão abstratamente inacessíveis absolutamente vãs. Ninguém as suportará,
nem poderá guardar dentro de si para as sentir como suas. Tu mesmo - no ímpeto
de destruir - foste pegar numa dessas detestáveis esculturas que os católicos,
uns cegos de crença, outros cegos de estupidez e, ainda, outros cegos de indiferentismo,
conservam sobre os altares. E a imagem dá Virgem não é, decerto, aquela ridícula
figura de madeira que
"De tanto se
cobrir e esconder
Cai de
caruncho, há muito tempo já!"
A imagem da
Virgem é a personalização ideal do amor puro, impecavelmente honesto, na donzela,
na esposa e na mãe!
Na pureza do
sentimento está a virgindade. E nem a virgindade seria coisa alguma apreciável
se não significasse a pureza do sentimento!
Por isso se
diz da Mãe do Cristo, - uma das mais admiráveis figuras da religião - que ficou
sempre virgem, ou igualmente pura, sem que pelo mais leve pensamento afectasse
nada contra a natureza, antes do parto, no parto, e depois do pano, isto é,
quando mulher amada, quando esposa e quando mãe !
Foi a criação
dum génio, que não pode ser mais idealmente artística, nem mais proficuamente moral!
E que
prejuízo haverá em se acreditar que tenha havido uma mulher com o coração de
tão fino oiro e de alma de cristal, que permanecesse pura, simples e ingénua
depois de esposada, como o fora antes -virgem?!
Pois não convirá que exista no espírito público esse modelo de perfeição moral para exemplo das
mulheres, e em correspondência a essa vulgar fase platónica da vida do homem,
que é tão útil e tão educadora?
Seja corno for,
meu João, os teus versos À Virgem apenas esfarrapam uma escultura dum mau
santeiro. E foi dessa escultura que tu levantaste os olhos para olhar o
passado a muitos séculos de distância, e te convenceres de que lá - para onde
olhaste - se não distingue ninguém que mereça o culto da Mãe de Deus! E foi
nessa persuasão que resolveste dar uma impressão, defeituosamente humana, exagerando
a animalidade e pondo em relevo o instinto carnal com todos os seus ávidos
sentidos.
"...dize as
horas de ansiedade, os dias
Febris em que
esperaste o teu noivado,
Em que morrias,
em que revivias
Na ânsia de entregar-te
ao desposado.
..........................................................
Põe no Céu um
azul intenso e forte,
Na vida um sopro
de volúpia, e os beijos
Parecem dados
a temer que a Morte
Venha esfriar
a febre dos desejos!"
Ora o que
estes versos tem de antipático são os traços firmes da sensualidade. Isso que
nos quadros mais vulgares da vida, ainda que seja uma verdade, reclama decência!
Meu João, meu
poeta ! Bem se vê que os versos À Virgem não fazem parte das tuas preciosas
"Palavras Sãs!" E que ficaram para
trás e bem longe do teu orientado "Caminho do Amor!".
Os livros que
tens publicado, quase todos, são dum alcance social moralizador como pouquíssimos
poderão andar nas mãos do público.
Recorda aquele
teu extraordinário soneto :
"Amor! Amor! E
esta palavra tem
a força redentora
de Jesus ...
..............................................
Que vence o
tempo e desafia a Morte
E torna bons
os corações dos maus!"
E quantas
outras poesias perfeitas na forma, mas ainda mais perfeitas pela ideia, pela
grande força moral que incutem!
A característica
da tua poesia é, deixa-me dizer assim, a humanização de todos os sentimentos, particularmente, os
religiosos, cuja fantasmagoria tens combatido com muitíssima energia, talento e
Arte.
Teu do
coração.
João de Deus
Ramos
in, ARTE E VIDA - Revista de arte, crítica e ciência - nº 1- Novembro de 1894
Esta carta de João de Deus dirigida ao seu amigo João de Barros - que era Director da Revista ARTE E VIDA - verberando o desconforto que lhe mereceram uns seus versos dedicados "À Virgem" - Mãe de Jesus - demonstra à saciedade a amizade que havia entre os dois cultores das Letras, que permitia cartas como esta em que, sem ferir a amizade, se pode discordar, deixando a opinião contrária com laivos de cortesia, respeito pelo outro e, sobretudo, pela defesa das ideias.
Devo confessar que nunca vi escrito mais belo em que a defesa da virgindade de Maria tenha sido tratada com tal profundidade ao chamar a atenção para este Mistério de Deus, pois - segundo João de Deus - que prejuízo haverá em se acreditar que tenha havido uma mulher com o coração de tão fino oiro e de alma de cristal, que permanecesse pura, simples e ingénua depois de esposada, como o fora antes -virgem?!
É nesta concepção de um Mistério de que nos é dito que Maria concebeu por "obra e graça de Deus" - que tudo pode - que, ou o homem aceita que assim aconteceu e Mulher que foi escolhida para ser a Mãe de Jesus é, desde todos os tempos, uma figura que esteve presente desde o Livro do Génesis na Obra da Criação, na Sabedoria de um Deus Único, ou, então, o que acontece, como aconteceu com João de Barros é a desconfiança de um Poder que não tem explicação, que não seja, pela aceitação, que quer se queira ou não, é sempre racional.
Tudo isto se enquadra no dia litúrgico, ontem vivido e que a Igreja dedica todos os anos a SANTA MARIA, MÃE DE DEUS, em que sob o texto de S. Lucas 2, 16-21, a Igreja proclama:
in, ARTE E VIDA - Revista de arte, crítica e ciência - nº 1- Novembro de 1894
Esta carta de João de Deus dirigida ao seu amigo João de Barros - que era Director da Revista ARTE E VIDA - verberando o desconforto que lhe mereceram uns seus versos dedicados "À Virgem" - Mãe de Jesus - demonstra à saciedade a amizade que havia entre os dois cultores das Letras, que permitia cartas como esta em que, sem ferir a amizade, se pode discordar, deixando a opinião contrária com laivos de cortesia, respeito pelo outro e, sobretudo, pela defesa das ideias.
Devo confessar que nunca vi escrito mais belo em que a defesa da virgindade de Maria tenha sido tratada com tal profundidade ao chamar a atenção para este Mistério de Deus, pois - segundo João de Deus - que prejuízo haverá em se acreditar que tenha havido uma mulher com o coração de tão fino oiro e de alma de cristal, que permanecesse pura, simples e ingénua depois de esposada, como o fora antes -virgem?!
É nesta concepção de um Mistério de que nos é dito que Maria concebeu por "obra e graça de Deus" - que tudo pode - que, ou o homem aceita que assim aconteceu e Mulher que foi escolhida para ser a Mãe de Jesus é, desde todos os tempos, uma figura que esteve presente desde o Livro do Génesis na Obra da Criação, na Sabedoria de um Deus Único, ou, então, o que acontece, como aconteceu com João de Barros é a desconfiança de um Poder que não tem explicação, que não seja, pela aceitação, que quer se queira ou não, é sempre racional.
Tudo isto se enquadra no dia litúrgico, ontem vivido e que a Igreja dedica todos os anos a SANTA MARIA, MÃE DE DEUS, em que sob o texto de S. Lucas 2, 16-21, a Igreja proclama:
(Naquele tempo,
os pastores) Foram apressadamente e encontraram Maria, José e o menino deitado
na manjedoura. Depois de terem visto, começaram a divulgar o que lhes tinham dito
a respeito daquele menino. Todos os que ouviram se admiravam do que lhes diziam
os pastores. Quanto a Maria, conservava todas estas coisas, ponderando-as no
seu coração. E os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o
que tinham visto e ouvido, conforme lhes fora anunciado. Quando se
completaram os oito dias, para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de
Jesus indicado pelo anjo antes de ter sido concebido no seio materno.
Que a atitude de Maria que, conservava todas estas coisas, ponderando-as no seu coração, possam servir hoje, como serviram a João de Deus para naquela carta simples e objectiva ter dito a João de Barros o seu desacordo sobre a Virgem que havia sido visitado pelo Anjo antes de ter concebido no seio materno.
É grande o Mistério, lá isso é... mas vale a pena - sem olhar ao que dizem os textos oficiais da Igreja Católica Romana - ler de novo e pausadamente a carta de João de Deus e meditar naquele parágrafo que acaba assim: Pois não convirá que exista no espírito público esse modelo de perfeição moral para exemplo das mulheres, e em correspondência a essa vulgar fase platónica da vida do homem, que é tão útil e tão educadora?
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