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sábado, 9 de janeiro de 2016

"De Noite" - um soneto de Joaquim de Araújo


DE NOITE

Desceu de há muito a noite silenciosa.
A lua, como um lírio imaculado.
Abre o cálix d'amor, uma saudosa.
No azul d'astros serenos cravejado.

Quem me dera sonhar o meu noivado
Naquela estância doce e misteriosa,
E aspirar-te os perfumes, branca rosa,
Longe das garras cruas do Pecado.

Talvez que se eu vivesse nesses mundos.
Calados, cheios de segredos fundos.
Te seguisse do alto dos espaços,

E estrela ou nuvem solitária, um dia
Caira inerte, inanimada e fria
No abismo mimoso dos teus braços...

in, "Portugal Pitoresco"
Lisboa, 1878
Joaquim de Araújo


Há dias, ao desfiar as páginas do "Portugal Pitoresco" uma velha publicação de Coimbra, dei com os olhos neste soneto e, depois, reli-o várias vezes no encantamento da sua leitura, para descobrir que o seu autor assentiu colaborar naquele jornal desde a primeira hora e quis honrá-lo com o verbo cantante e ritmado da sua lira que pede meças aos mais sábios cultores da arte maior do soneto português.

Aquela lua que ele descreve como um cálix d'amor colocado no meio das estrelas do céu daquele noite, é ele mesmo - o Poeta - que num enlevo de pureza mística o oferece à sua branca rosa, e ao aspirar-lhe os perfumes o fazer sem sombras de pecado, desejando-a seguir como a lua - em que se transforma nos seus versos - do alto dos espaços, para um dia inerte, ou seja, rendido, cair no abismo mimoso dos seus braços.

Pela pureza da sua composição poética. Joaquim de Araújo, cujo nome não ficou na memória colectiva do povo e, que se saiba, inscrito nas colectâneas escolares, merece, contudo, ser lembrado neste tempo em que a poesia romanesca ao ter entrado por outros caminhos, não pode ser esquecida, porquanto, em todo o século XIX português deixou marcas profundas, de tal modo que ainda hoje, o aprumo das ideias e o primor das composições continuam a ser um regalo de pureza linguística, onde o amor se funde com o encanto de o sentir e de o viver.

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