Pesquisar neste blogue

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

"Reminiscência" - Um poema de Fernanda de Castro



Reminiscência

"...Lisboa, Santarém, Porto, Leiria..."
(eu sabia de cor toda a geografia)
O Senhor Inspector
deu-me a nota mais alta em geografia
e disse gravemente:
- "Continua. Hás-de ser gente..." -

"Ângulo recto, agudo,
cateto, hipotenusa...
(já manchara de giz a minha blusa
mas respondia a tudo
e a professora sorria
enquanto eu papagueava a geometria)
"...D.Sancho, o Povoador...
D.Dinis, o Lavrador...
(Tinha então boa memória,
sabia as datas da história...)
1580
1640
1143
em Arcos de Valdevez...
(Muito bem, sim senhor!
A pequena é simpática)
E depois, em voz alta, o senhor Inspector:
- Vamos à gramática." -

"...E, nem, não só, mas também...
conjunções copulativas"
(Eu pensava na alegria
que ia dar a minha mãe,
nas frases admirativas
da velha D.Maria,
a minha primeira mestra:
- Tão novinha e ficou "bem"!" -
e esta suavíssima orquestra
acompanhava em surdina
o meu primeiro exame de menina
aplicada, orgulhosa e inteligente...)

- "Vá ao quadro, menina! Docilmente
fiz os problemas, dividi fracções,
disse as regras das quatro operações
e finalmente
O Senhor Inspector felicitou-me,
quis saber o meu nome
e declarou-me
que ficara "distinta" sem favor.

Ah! que esplendor!
Que alegria total e sem mistura,
que orgulho, que vaidade!
Olhei de frente o sol e a claridade
não me cegou, julguei-a quase escura...
As estrelas, fitei-as como iguais.
Melhor: como rivais...
E a Humanidade
pareceu-me um rebanho sem vontade,
uma vasta colónia de formigas...
(As minhas pobres, tímidas amigas!)
Pouco depois, em casa, a testa em fogo, o olhar em brasa,
gritei num desafio
à terra, ao céu, ao mar, ao rio:
- "O mãe, eu já sei tudo!"
No seu olhar tranquilo de veludo,
no seu olhar profundo,
que era todo o meu mundo,
passou uma ironia tão velada,
uma ironia
tão funda, tão calada,
que ainda hoje murmuro cada dia:
"-O mãe, eu não sei nada!..."
............................................................................................................

Esta reminiscência infantil de Fernanda de Castro trouxe à minha memória tempos de antanho, quando, como aconteceu coma Poetisa, ainda me recordo - e bem! - das visitas dos inspectores escolares que vinham, ainda no meu tempo, aquilatar junto dos professores e alunos, sobre o ensino dos mestres e do saber dos alunos que eram escolhidos "à sorte" para demonstrarem os seus conhecimentos, o que prova, como estou velho, mas graças a Deus recordado daqueles momentos.

Ao contrário do que hoje acontece - pela protecção que é dada às crianças - estas antigas visitas não deixaram mossa, nem foram nocivas.

Agradeço à memória de Fernanda de Castro, que ainda conheci, a leitura aprazível deste poema, pela delicadeza da escrita, pelo arroubo da sua vaidade infantil por ter feito um brilharete ante o inspector, e perante a sua mãe: "Ó mãe, eu já sei tudo"... para afinal concluir, tal como eu faço - Eu não sei nada - mas sei, e isto me chega, para não embalar nas modernices do nosso actual ensino - especialmente o da antiga Escola Primária, que é aí que se formam os alicerces da pessoa  - e que está  precisado de homens de saber e de sentido crítico da vida...

Sobretudo, de homens públicos que não vivam com medo dos Sindicatos!

1 comentário:

  1. Este poema é o único que na NET está integral. Por exemplo tem a frase "julguei-a quase escura ...." e a frase "E depois, em voz alta, o senhor inspector ".
    Sei, porque me lembrava deste poema da minha infância ( 9 anos ) por ter sido talvez o primeiro que decorei

    ResponderEliminar