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segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Um poema de Miguel Torga: RECATO.




RECATO

Lê.
Mas decifra,
Com razão
E o coração,
Versos que nem eu quero que o pareçam,
De tão negros que são.
Todo o poema é um teste
Que põe à prova a inquietação
De quem nele se aventura.
Este
Que te proponho a horas mortas,
E é um tronco de tortura
Penitente,
Abre-te cautamente
As portas
De uma  pungente
Dor envergonhada,
Assim veladamente
Soluçada.

Coimbra, 17 de Novembro de 1984
in, "Diário XIV"



A que se deve este poema do Poeta, escrito a horas mortas?
Meditemos. 

Sejamos dignos daquilo que ele nos propõe e vamos tentar decifrar Com razão E o coração estes versos onde subjaz a sua Dor envergonhada como se ela tivesse sido - e foi concerteza, o que o levou em Coimbra onde teve o seu consultório de médico a não dormir sossegadamente naquela noite em que o seu preclaro pensamento deu em bater as ondas alteradas do seu mar interior contra uns certos "rochedos" que havia nas arribas das costas da vida e que lhe tiraram o sono.

Dois dias depois de ter escrito este poema, diz ele no seu "Diário" que a sua indignação contra a vida política havia deixado de ter a veemência do passado por lhe faltar o fogo da esperança.

E não tarda que a seguir esta linha de pensamento, declare: Descri de todos os governantes. Nem os melhores prestam. Nenhum é imune à tentação do poder. O poeta nunca sabe quando um verso lhe é dado. O santo quando atinge a santidade. Ora o político, desde que e entronizado, fica senhor do seu pequeno mundo. Confunde o privilégio de mandar, que devia ser a modéstia de servir, com os fumos da grandeza.

Está aqui a chave do mistério do poema RECATO, assim chamado porque o Poeta se quis resguardar nele - e na sua Dor envergonhada - para não desatar a chamar de vaidosos os políticos daquele tempo, como os de agora, que ao cavalgar o cavalo do poder confundem o poder do mando com a modéstia de servir, pelo que este poema retrata perfeitamente aquilo que levou Miguel Torga a fugir dos tentadores que o queriam enfileirar no Partido Socialista e que, embora tivesse aceitado presidir ao primeiro Comício Socialista realizado em Coimbra em 1-6-1974 - conforme diz no seu livro "Ensaios e Discursos" - na abertura dos trabalhos, disse: 

Gostaria de esclarecer desde já que, não sendo filiado no Partido, presido a esta reunião na qualidade de homem socialista que sempre fui. Homem mais sensível a uma ética do que a uma ideologia, mais espontaneamente fraterno do que disciplinarmente correligionário, mais atento ao imperativo dinâmico de vozes remotas do que ao momentâneo encantamento dos ecos doutrinários.

Que falta estão fazendo homens íntegros como Miguel Torga, capazes, como diz o povo de chamar os bois pelos cornos - porque se estes animais os têm não podem ser ignorados de forma alguma - pelo que, conviver, fingindo ou ignorando as verdades não pode ser um modo de vida, razão, porque há que tomar atitudes consequentes.

Descri de todos os governantes - diz o Poeta -  e não foi por deixar de ter sido aliciado, foi porque a sua consciência de cidadão impoluto falou mais alto dentro de si mesmo, pelo que, na hora que passa em que a cadeira do poder espera por quem nela se queira assentar ficaria bem aos políticos que a querem alcançar meditar no que disse Miguel Torga quanto ao privilégio de mandar, que devia se a modéstia de servir...

RECATO é uma poesia digna de um homem de valor.
Miguel Torga foi um desses homens!

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