A saudade
não está na distância das coisas,
mas numa súbita fractura de nós,
num quebrar de alma em que
todas as coisas se afundam.
Virgílio Ferreira
Saudade, na
Gramática Portuguesa é um substantivo abstracto e de tal modo assim é, que só
existe na nossa língua. Constitui,
possivelmente, a palavra mais preponderante na poesia de amor e na música
popular do nosso povo, descrevendo toda uma amálgama dos sentimentos, como os
de perda e distância, estando a sua génese directamente ligada à tradição
marítima portuguesa, que ainda hoje não consegue pensar no mar sem sentir
saudade.
É que foi nesse
mar que onde ficaram para sempre, navegadores, pescadores, mulheres, crianças,
esposos e filhos, impotentes perante as
tragédias, tendo aprendido ao longo dos séculos a dura lição da humildade
perante os ingentes e revoltos elementos da natureza, sendo esta imprevisibilidade
e este paradoxo do mar os componentes mais directos do grande sentimento da
saudade que mora em Portugal, como não acontece em qualquer outro lugar do
mundo.
A palavra tem
origem no latim "solitas, solitatis" (solidão) e é a expressão da
forma arcaica de "soedade, soidade e suidade", entroncando-se na
época dos Descobrimentos, definindo a melancolia da lembrança, quer de coisas,
estados de alma ou acções.
Diz o
Professor Joaquim de Carvalho (1892-1958) que a palavra "saudade" é uma das mais difíceis de traduzir em
todo o mundo, porque possui uma significação algo complexa.
Data do século XV, a primeira tentativa de
definir esta palavra que conforme já então se dizia não tinha correspondência
noutra língua qualquer.
"Saudade", diz o rei D. Duarte, é o "sentido do coração
que vem da sensualidade e não da razão" (Leal Conselheiro, cap. XXV). A saudade é assim algo que é de natureza
sentimental antes de ser consciente ou racional. Em geral podemos traduzir a
saudade como um apelo sentimental de união com algo ausente, distante ou
perdido.
Há quem
sustente que a saudade se remete, em primeiro lugar, para aquele ou aquela que fica à espera de
quem partiu, cabendo a este, um outro aspecto de saudade que o povo liga à
nostalgia.
Sem se poder
traduzir, há quem a defina a saudade como uma lembrança especialmente
nostálgica de algo vivo ou inanimado que está ausente, de que o termo matar a saudade, é, quase sempre, fazer
que ela desapareça em face de um encontro com uma realidade que esteve longe,
mas deixando sempre latente a sua presença na alma, porque é dela um dos atributos sensoriais mais
vivos no sentimento do povo português.
Esta asserção
ganha todo o sentido quando mergulhamos a saudade nas ondas do mar que
desbravámos no tempo glorioso da gesta portuguesa, onde se intromete com toda a
intenção o heterónimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, ao dizer assim na
Ode Marítima:
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um
espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia
recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias
relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada
bate,
E me envolve como uma recordação duma outra
pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
Saudade tem
merecido de muitos quadrantes da cultura portuguesa uma atenção muito especial,
não só pela carga emocional que possui, mas também, por ser um tema de eleição
que anda preso e não se solta, ou se isso acontece, volta sempre, como se fosse
uma andorinha, que no ano seguinte volta ao mesmo beiral.
Têm-na vivido
e cantado os mais humildes, constituindo-se na alma do povo como a sua
expressão mais pura, porque tem sido ancorado a ela que ele ao longo dos tempos
têm ultrapassado muitas das suas amarguras expressas em quadras que se cantam,
como se as mesma fossem rezadas, como esta:
Esta palavra saudade
E aquele que a inventou
Na primeira vez que a disse
Concerteza que chorou.
Mas o seu
influxo nunca deixou de penetrar bem fundo nos mais letrados que a têm cantado
e escrito sobre ela versos e prosas magistrais, como Eduardo Lourenço, que rendido
à sua mística, afirma que é a própria saudade que se funda dentro do homem, tal
como ele afirma na Mitologia da Saudade:
Na verdade, não temos saudades, é a saudade
que nos tem, que faz de nós o seu objecto. Imersos nela, tornamo-nos outros.
Todo o nosso ser ancorado no presente fica, de súbito, ausente.
Mas é, nesse
homem invulgar que foi Poeta e Sacerdote, Moreira das Neves
que encontramos espelhada como em nenhum outro livro a palavra saudade, cantada em todos os cambiantes, passando pelo fado e pela guitarra portuguesa, ou pelo lado mais íntimo, dolente e magoado que sentem as almas dos que ficam, lembrando os emigrantes, ou até, roçando a candura das preces a Deus, mas sem faltar, muitas vezes uma réstea de Sol a iluminar o caminho para dar alento e coragem, porque é preciso crer e sentir o destino como o sente o marinheiro, quando se perde no alto mar.
que encontramos espelhada como em nenhum outro livro a palavra saudade, cantada em todos os cambiantes, passando pelo fado e pela guitarra portuguesa, ou pelo lado mais íntimo, dolente e magoado que sentem as almas dos que ficam, lembrando os emigrantes, ou até, roçando a candura das preces a Deus, mas sem faltar, muitas vezes uma réstea de Sol a iluminar o caminho para dar alento e coragem, porque é preciso crer e sentir o destino como o sente o marinheiro, quando se perde no alto mar.
Moreira das
Neves é um cantor privilegiado da saudade, num livro precioso, publicado após a
sua morte, ocorrida em 1992.
O livro “Variações sobre a Saudade” foi descoberto , com outros pequenos
tesouros, no espólio do Poeta, pelo seu fiel, infatigável e douto amigo,
discípulo e companheiro também, até nas lides do jornalismo, Manuel Ferreira da
Silva, diz o seu prefaciador Francisco J. Velozo.
Com um
sentimento de saudade pelo Homem ilustre, que foi Padre Francisco Moreira das
Neves, é com esse mesmo sentimento que o jornal “ A Comarca de Arganil”
homenageia, reproduzindo algumas quadras do Poeta, que foi, entre tantas lides,
um exímio jornalista.
Eco de fala perdida
Nas brumas do alto mar.
Lenço acenando à partida
De alguém que espera voltar.
Quanto mais a idade cresce
Mais a vida se dilui.
Apenas não esmorece
A saudade do que fui.
Búzio das ondas de Além,
Canção de lago sem fundo.
A saudade é como alguém
Que chega do fim do mundo.
Carta que ao longe se envia,
Telegrama que nos vem.
Toda a saudade anuncia
O pensamento de alguém.
Ninguém diga que a saudade
Abandona os infelizes.
Ela nunca deixa a herdade
Em que fundou as raízes.
Quem busque terra estrangeira
Pode sem medo contar:
- Fica a saudade à lareira
Sentada no seu lugar.
Pescador que vai ao mar
E no mar se perde em rondas
Ouve a saudade gritar
Na voz de todas as ondas.
Extinta a última brasa
Tudo morreu? Ninguém creia.
A saudade em nossa casa
Faz às vezes de candeia.
Nas romagens às ermidas,
Alpendres de claridade,
Não há promessas cumpridas
Com as que cumpre a saudade.
Não sei que mistério atrai
Nuvens d’aquém e d’além.
Se uma saudade nos vai
Outra saudade nos vem.
Debaixo do figueiral
Pôs-se a saudade a bordar.
Gastou agulha e dedal
Sem a tarefa acabar.
Ao lembramos este sentimento genuíno da alma portuguesa lembramos o génio poético de Moreira das Neves que apontamos como expoente da
nosso sentir e pelo qual guardamos uma enorme saudade.
Sem comentários:
Enviar um comentário