O MOSTRENGO
O mostrengo que está no fim do
mar
Na noite de breu ergueu-se a
voar;
A roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse: «Quem é que ousou
entrar
Nas minhas cavernas que não
desvendo,
Meus tectos negros do fim do
mundo?»
E o homem do leme disse,
tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me
roço?
De quem as quilhas que vejo e
ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três
vezes,
Três vezes rodou imundo e
grosso.
«Quem vem poder o que só eu
posso,
Que moro onde nunca ninguém me
visse
E escorro os medos do mar sem
fundo?»
E o homem do leme tremeu, e
disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos
ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três
vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que
eu:
Sou um povo que quer o mar que é
teu;
E mais que o mostrengo, que me a
alma teme
E roda nas trevas do fim do
mundo,
Manda a vontade, que me ata ao
leme,
De El-Rei D. João Segundo!»
Fernando Pessoa
in, Mensagem
Fernando Pessoa
in, Mensagem
Testemunha calada e avançada da gesta dos Descobrimentos portugueses a guarita da Torre de Belém viu partir a nau de Bartolomeu Dias e sumir-se, mergulhada entre a névoa do céu e o azul do Mar Desconhecido.
Tem, hoje como então, o mesmo porte altivo da escultura pétrea que o artista lhe deu, passados que são alguns séculos, com a diferença de já não haver mais naus nem mareantes e, só, palavras - como estas - de sentimento de um tempo em que Portugal, pequeno no tamanho geográfico, foi um País Grande que hoje já não acontece, nem no sonho e , muito menos, na vontade - se me engano, peço desculpa - de ser defendido com a mais valia da sua História que é para muitos desconhecida, mercê da falha imperdoável de um ensino coxo das glórias de que fomos semente e das quais colhemos alguns frutos que infelizmente, desperdiçamos.
É tendo isto como tema de reflexão neste tempo em que a "nau" portuguesa vê "Mostrengos" dentro do próprio Continente - senão no próprio lar - que se lembra o belo texto de Fernando Pessoa inspirado no Mostrengo do Cabo das Tormentas de Luis de Camões, num apelo - eu sei, sem êxito - junto dos que julgam que a História de Portugal começou em 1910, para que se lembrem que antes da República houve muitos "Bartolomeus Dias" que não podem ser esquecidos, porque é neles que se fundam as raizes mais fundas de Portugal.
Luís de Camões faz de guia. É só seguir...
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37 - ( Continua a navegação
)
"Porém já cinco Sóis eram
passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca doutrem navegados,
Prósperamente os ventos
assoprando,
Quando uma noite estando
descuidados,
Na cortadora proa vigiando,
Uma nuvem que os ares escurece
Sobre nossas cabeças aparece.
38 - ( O Adamastor )
"Tão temerosa vinha e
carregada,
Que pôs nos corações um grande
medo;
Bramindo o negro mar, de longe
brada
Como se desse em vão nalgum
rochedo.
— "Ó Potestade, disse,
sublimada!
Que ameaço divino, ou que segredo
Este clima e este mar nos
apresenta,
Que mor cousa parece que
tormenta?" —
39
"Não acabava, quando uma
figura
Se nos mostra no ar, robusta e
válida,
De disforme e grandíssima
estatura,
O rosto carregado, a barba
esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e
pálida,
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.
40
"Tão grande era de membros, que
bem posso
Certificar-te, que este era o
segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do
mundo:
Com um tom de voz nos fala horrendo e
grosso,
Que pareceu sair do mar profundo:
Arrepiam-se as carnes e o cabelo
A mi e a todos, só de ouvi-lo e
vê-lo.
41 - ( Fala de Adamastor aos
portugueses )
"E disse: — "Ó gente ousada,
mais que quantas
No mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e
tantas,
E por trabalhos vãos nunca
repousas,
Pois os vedados términos
quebrantas,
E navegar meus longos mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e
tenho,
Nunca arados d'estranho ou próprio
lenho:
42 - ( Fala do Adamastor )
— "Pois vens ver os segredos
escondidos
Da natureza e do úmido elemento,
A nenhum grande humano concedidos
De nobre ou de imortal
merecimento,
Ouve os danos de mim, que
apercebidos
Estão a teu sobejo atrevimento,
Por todo o largo mar e pela terra,
Que ainda hás de sojugar com dura
guerra.
43 - ( Profecias do Adamastor
)
— "Sabe que quantas naus esta
viagem
Que tu fazes, fizerem de
atrevidas,
Inimiga terão esta paragem
Com ventos e tormentas desmedidas.
E da primeira armada que passagem
Fizer por estas ondas insofridas,
Eu farei d'improviso tal castigo,
Que seja mor o dano que o perigo.
44 - ( Bartolomeu Dias. Naufrágios.
)
— "Aqui espero tomar, se não me
engano,
De quem me descobriu, suma
vingança.
E não se acabará só nisto o dano
Da vossa pertinace confiança;
Antes em vossas naus vereis cada
ano,
Se é verdade o que meu juízo
alcança,
Naufrágios, perdições de toda
sorte,
Que o menor mal de todos seja a
morte.
in, Canto "V" de Os Lusíadas
Ao ler-se a estrofe 43 (Profecias do Adamastor) aquilo que ressalta de imediato é que, tanto Vasco da Gama - a caminho da Índia - como Pedro Álvares Cabral - a caminho do Brasil - sofreram as maiores tempestades que o sopro do "Mostrengo", no dizer de Pessoa, lhes lançou, acometendo as armadas como já o havia feito à de Bartolomeu Dias, tendo sido a resposta deste: aqui, Manda a vontade que me ata ao leme / De El-Rei D, João Segundo, que continuou a imperar nos mareantes das naus da Índia e do Brasil, que passaram adiante, porque tinham um destino a cumprir, como o havia tido aquele que passou para além do tormentoso Cabo.
- E, hoje, qual é o destino que nos devia atar ao leme?
Portugal, é bem de ver!
A guarita da Torre de Belém, lá continua.
Nós, é que - com as nossas quezílias internas e externas - estamos a descontinuar Portugal, sem cuidarmos que os "Adamastores" ou "Mostrengos" continuam a existir.
Apenas mudaram de nome e se é verdade que não há mais Mundos para descobrir, verdadeiramente existe Portugal reduzido à sua mais pequena expressão territorial e que é urgente descobrir.
- ... Mas, porque andamos à procura dele e não o achamos dentro de nós?
Porque julgámos, num dia bem recente, que o resto da Europa nos tinha descoberto e com tal descoberta tinham acabado os "Cabos das Tormentas" e tínhamos em frente um "oásis" - como alguns julgaram - quando, afinal, o que tínhamos era aquela horrenda personagem que o génio de Luís de Camões nos deixou, confiado que ficava por ali o seu mau génio, quando, afinal, ele continua vivo nos "Adamastores" que nos têm subjugado desde 1580, ou seja, desde o ano em que morreu o seu criador artístico e bem visível, nos últimos decénios.
- Ou há por aí quem os não veja?
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