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quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Lembrando o velho e os novos "Mostrengos"!




O MOSTRENGO

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
A roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,

E disse: «Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?»
E o homem do leme disse, tremendo:

«El-Rei D. João Segundo!»
«De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?»
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,

Três vezes rodou imundo e grosso.
«Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?»

E o homem do leme tremeu, e disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,

E disse no fim de tremer três vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrengo, que me a alma teme

E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!»

                                   Fernando Pessoa
                                      in, Mensagem

Testemunha calada e avançada da gesta dos Descobrimentos portugueses a guarita da Torre de Belém viu partir a nau de Bartolomeu Dias e sumir-se, mergulhada entre a névoa do céu e o azul do Mar Desconhecido.


Tem, hoje como então, o mesmo porte altivo da escultura pétrea que o artista lhe deu, passados que são alguns séculos, com a diferença de já não haver mais naus nem mareantes e, só, palavras - como estas - de sentimento de um tempo em que Portugal, pequeno no tamanho geográfico, foi um País Grande que hoje já não acontece, nem no sonho e , muito menos, na vontade - se me engano, peço desculpa - de ser defendido com a mais valia da sua História que é para muitos desconhecida, mercê da falha imperdoável de um ensino coxo das glórias de que fomos semente e das quais colhemos alguns frutos que infelizmente, desperdiçamos.

É tendo isto como tema de reflexão neste tempo em que a "nau" portuguesa vê "Mostrengos" dentro do próprio Continente - senão no próprio lar -  que se lembra o belo texto de Fernando Pessoa inspirado no Mostrengo do Cabo das Tormentas de Luis de Camões, num apelo - eu sei, sem êxito - junto dos que julgam que a História de Portugal começou em 1910, para que se lembrem que antes da República houve muitos "Bartolomeus Dias" que não podem ser esquecidos, porque é neles que se fundam as raizes mais fundas de Portugal.

Luís de Camões faz de guia. É só seguir...

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37 - ( Continua a navegação ) 

        "Porém já cinco Sóis eram passados  
        Que dali nos partíramos, cortando  
        Os mares nunca doutrem navegados,  
        Prósperamente os ventos assoprando,  
        Quando uma noite estando descuidados,  
        Na cortadora proa vigiando, 
        Uma nuvem que os ares escurece  
        Sobre nossas cabeças aparece. 
  
38 - ( O Adamastor ) 

        "Tão temerosa vinha e carregada, 
        Que pôs nos corações um grande medo; 
        Bramindo o negro mar, de longe brada 
        Como se desse em vão nalgum rochedo. 
        — "Ó Potestade, disse, sublimada! 
        Que ameaço divino, ou que segredo 
        Este clima e este mar nos apresenta, 
        Que mor cousa parece que tormenta?" — 
  
39 
        "Não acabava, quando uma figura 
        Se nos mostra no ar, robusta e válida, 
        De disforme e grandíssima estatura, 
        O rosto carregado, a barba esquálida, 
        Os olhos encovados, e a postura 
        Medonha e má, e a cor terrena e pálida, 
        Cheios de terra e crespos os cabelos, 
        A boca negra, os dentes amarelos. 
  
40 
        "Tão grande era de membros, que bem posso 
        Certificar-te, que este era o segundo 
        De Rodes estranhíssimo Colosso, 
        Que um dos sete milagres foi do mundo: 
        Com um tom de voz nos fala horrendo e grosso, 
        Que pareceu sair do mar profundo: 
        Arrepiam-se as carnes e o cabelo 
        A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo. 
  
41 - ( Fala de Adamastor aos portugueses ) 

        "E disse: — "Ó gente ousada, mais que quantas 
        No mundo cometeram grandes cousas, 
        Tu, que por guerras cruas, tais e tantas, 
        E por trabalhos vãos nunca repousas, 
        Pois os vedados términos quebrantas, 
        E navegar meus longos mares ousas, 
        Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho, 
        Nunca arados d'estranho ou próprio lenho: 
  
42 - ( Fala do Adamastor ) 
        — "Pois vens ver os segredos escondidos 
        Da natureza e do úmido elemento, 
        A nenhum grande humano concedidos 
        De nobre ou de imortal merecimento, 
        Ouve os danos de mim, que apercebidos 
        Estão a teu sobejo atrevimento, 
        Por todo o largo mar e pela terra, 
        Que ainda hás de sojugar com dura guerra. 
  
43 - ( Profecias do Adamastor ) 

        — "Sabe que quantas naus esta viagem  
        Que tu fazes, fizerem de atrevidas,  
        Inimiga terão esta paragem 
        Com ventos e tormentas desmedidas. 
        E da primeira armada que passagem 
        Fizer por estas ondas insofridas, 
        Eu farei d'improviso tal castigo, 
        Que seja mor o dano que o perigo. 
  
44 - ( Bartolomeu Dias. Naufrágios. ) 

        — "Aqui espero tomar, se não me engano,  
        De quem me descobriu, suma vingança.   
        E não se acabará só nisto o dano  
        Da vossa pertinace confiança; 
        Antes em vossas naus vereis cada ano, 
        Se é verdade o que meu juízo alcança, 
        Naufrágios, perdições de toda sorte, 
        Que o menor mal de todos seja a morte. 

in, Canto "V" de Os Lusíadas   

Ao ler-se a estrofe 43 (Profecias do Adamastor) aquilo que ressalta de imediato é que, tanto Vasco da Gama - a caminho da Índia - como Pedro Álvares Cabral - a caminho do Brasil - sofreram as maiores tempestades que o sopro do "Mostrengo", no dizer de Pessoa, lhes lançou, acometendo as armadas como já o havia feito à de Bartolomeu Dias, tendo sido a resposta deste: aqui, Manda a vontade que me ata ao leme / De El-Rei D, João Segundo, que continuou a imperar nos mareantes das naus da Índia e do Brasil, que passaram adiante, porque tinham um destino a cumprir, como o havia tido aquele que passou para além do tormentoso Cabo.

- E, hoje, qual é o destino que nos devia atar ao leme?

Portugal, é bem de ver!
A guarita da Torre de Belém, lá continua.

Nós, é que - com as nossas quezílias internas e externas - estamos a descontinuar Portugal, sem cuidarmos que os "Adamastores" ou "Mostrengos" continuam a existir.
Apenas mudaram de nome e se é verdade que não há mais Mundos para descobrir, verdadeiramente existe Portugal reduzido à sua mais pequena expressão territorial e que é urgente descobrir.

- ... Mas, porque andamos à procura dele e não o achamos dentro de nós?

Porque julgámos, num dia bem recente, que o resto da Europa nos tinha descoberto e com tal descoberta tinham acabado os "Cabos das Tormentas" e tínhamos em frente um "oásis" - como alguns julgaram - quando, afinal, o que tínhamos era aquela horrenda personagem que o génio de Luís de Camões nos deixou, confiado que ficava por ali o seu mau génio, quando, afinal, ele continua vivo nos "Adamastores" que nos têm subjugado desde 1580, ou seja, desde o ano em que morreu o seu criador artístico e bem visível, nos últimos decénios.

- Ou há por aí quem os não veja?


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