in. "Miguel Torga - Fotobiografia" de Clara Rocha
Cá estou mais uma vez cingido à minha natureza profunda.
Vestido como qualquer camponês e a sentir-me bem dentro desta pele
terrosa, cavo o quintal, arranco silvas,
podo roseiras, racho lenha. E converso com gente do meu agro que me vem visitar ou
consultar, gente que nunca me leu, nem faz ideia do que é ser poeta, que fala
de trivialidades e quer ouvir respostas triviais. Alimento com todo o meu ser
essas conversas intermináveis, feitas de tudo e de nada, e quando elas acabam
retomo a enxada de boa consciência, na paz de quem compreendeu e foi
compreendido. Sabe bem compartilhar da condição comum. Lá em baixo sou uma
ficção entre ficções: aqui sou uma criatura entre criaturas.
in, "Diário XIV" em S. Martinho de Anta,
23 de Dezembro de 1982
Cá estou, mais uma vez rendido a Miguel Torga.
Leio este pequeno texto que ele escreveu entre a enxada e a secretária da sua casa transmontana de S. Martinho de Anta - até onde uma vez abalei numa "peregrinação" laudatória da sua lembrança - e parece que o vejo a atender o "seu povo" a ouvir as suas trivialidades e a responder-lhe no mesmo tom, sem quaisquer demonstrações do ser que ele foi - médico e poeta - dos mais genuínos que viveram em Portugal no século XX.
Hoje, quando vou à pequena aldeia de onde sou natural, sou algo parecido - só nisto - com Miguel Torga, quando tento limpar a terra do meu quintal das ervas daninhas e das silvas teimosas, no intento de lhe dar a aparência com que o recebi das mãos dos meus pais que Deus lá tem, tal como eles o fizeram dos que os antecederam.
É o preito que pago à terra onde estão as minhas raízes, esquecendo o que acontece comigo quando retorno à cidade, nos momentos em que dou comigo a tropeçar nas palavras do Poeta, no seu dizer: Lá em baixo - penso que se referia a Coimbra onde tinha o seu consultório - diz que sentia uma ficção entre ficções, porque sempre se sentiu um homem da ruralidade do seu agro, onde ia com a frequência que podia para limpar o quintal e matar saudades do ar e das montanhas.
Como eu entendo Miguel Torga!
Como eu respeito e bebo as suas palavras em prosa ou verso, umas e outras, filhas dilectas de um temperamento que alguns terão achado difícil, mas só, porque o não quiseram compreender, como ele se define, austero, mas verdadeiro no seu poema BIOGRAFIA, que vale a pena ler e meditar.
Sonho, mas não parece.
Nem quero que pareça.
É por dentro que eu gosto que
aconteça
A minha vida.
Íntima, funda, como um
sentimento
De que se tem pudor.
Vulcão de exterior
Tão apagado,
Que um pastor
Possa sobre ele apascentar o
gado.
Mas os versos, depois,
Frutos do sonho e dessa mesma
vida,
É quase à queima-roupa que os
atiro
Contra a serenidade de quem
passa.
Então, já não sou eu que
testemunho
A graça
Da poesia:
É ela, prisioneira,
Que, vendo a porta da prisão
aberta,
Como chispa que salta da
fogueira,
Numa agressiva fúria se liberta.
in, "Orfeu Rebelde"
Excelente apontamento, parabéns! Simples, vibrante, despretensioso, um reavivar d'Alma. Para espreitar de vez em quando...e relembrar.
ResponderEliminar