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sexta-feira, 7 de agosto de 2015

A ruralidade que havia em Miguel Torga


in. "Miguel Torga - Fotobiografia" de Clara Rocha


Cá estou mais uma vez cingido à minha natureza profunda. Vestido como qualquer camponês e a sentir-me bem dentro desta pele terrosa,  cavo o quintal, arranco silvas, podo roseiras, racho lenha. E converso com gente do meu agro que me vem visitar ou consultar, gente que nunca me leu, nem faz ideia do que é ser poeta, que fala de trivialidades e quer ouvir respostas triviais. Alimento com todo o meu ser essas conversas intermináveis, feitas de tudo e de nada, e quando elas acabam retomo a enxada de boa consciência, na paz de quem compreendeu e foi compreendido. Sabe bem compartilhar da condição comum. Lá em baixo sou uma ficção entre ficções: aqui sou uma criatura entre criaturas.

in, "Diário XIV" em S. Martinho de Anta,  23 de Dezembro de 1982


Cá estou, mais uma vez rendido a Miguel Torga.

Leio este pequeno texto que ele escreveu entre a enxada e a secretária da sua casa transmontana de S. Martinho de Anta - até onde uma vez abalei numa "peregrinação" laudatória da sua lembrança - e parece que o vejo a atender o "seu povo" a ouvir as suas trivialidades e a responder-lhe no mesmo tom, sem quaisquer demonstrações do ser que ele foi - médico e poeta - dos mais genuínos que viveram em Portugal no século XX.

Hoje, quando vou à pequena aldeia de onde sou natural, sou algo parecido - só nisto - com Miguel Torga, quando tento limpar a terra do meu quintal das ervas daninhas e das silvas teimosas, no intento de lhe dar a aparência com que o recebi das mãos dos meus pais que Deus lá tem, tal como eles o fizeram dos que os antecederam.

É o preito que pago à terra onde estão as minhas raízes, esquecendo o que acontece comigo quando retorno à cidade, nos momentos em que dou comigo a tropeçar nas palavras do Poeta, no seu dizer: Lá em baixo - penso que se referia a Coimbra onde tinha o seu consultório - diz que sentia uma ficção entre ficções, porque sempre se sentiu um homem da ruralidade do seu agro, onde ia com a frequência que podia para limpar o quintal e matar saudades do ar e das montanhas.

Como eu entendo Miguel Torga!

Como eu respeito e bebo as suas palavras em prosa ou verso, umas e outras, filhas dilectas de um temperamento que alguns terão achado difícil, mas só, porque o não quiseram compreender, como ele se define, austero, mas verdadeiro no seu poema BIOGRAFIA, que vale a pena ler e meditar.


Sonho, mas não parece.
Nem quero que pareça.
É por dentro que eu gosto que aconteça
A minha vida.
Íntima, funda, como um sentimento
De que se tem pudor.

Vulcão de exterior
Tão apagado,
Que um pastor
Possa sobre ele apascentar o gado.

Mas os versos, depois,
Frutos do sonho e dessa mesma vida,
É quase à queima-roupa que os atiro
Contra a serenidade de quem passa.
Então, já não sou eu que testemunho
A graça
Da poesia:
É ela, prisioneira,
Que, vendo a porta da prisão aberta,
Como chispa que salta da fogueira,
Numa agressiva fúria se liberta.

in, "Orfeu Rebelde"


1 comentário:

  1. Excelente apontamento, parabéns! Simples, vibrante, despretensioso, um reavivar d'Alma. Para espreitar de vez em quando...e relembrar.

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