DISCURSO DE D.
JOÃO PECULIAR, ARCEBISPO DE BRAGA,
EM LISBOA em 30
DE JUNHO DE 1147.
Discurso
proferido pelo arcebispo de Braga perante o alcaide, o bispo moçarabe, e outras
autoridades da Lisboa muçulmana. D. João Peculiar, acompanhado pelo bispo do
Porto e alguns cruzados, e após se ter negociado um período de tréguas,
dirigiu-se à cidade, para explicar as
razões do ataque «devendo parecer que se os atacávamos era a grande pesar
nosso», como escreveu o cruzado autor da carta em que se transcreve este
discurso.
O discurso do
arcebispo de Braga mostra bem as razões que os cristãos davam para a conquista
dos territórios muçulmanos. O fundamento era a «reconquista», e não a
«cruzada». Era retomar a posse de territórios que eram cristãos e que os
muçulmanos tinham conquistado indevidamente. Não havia outras razões, nem de
ordem religiosa nem cultural, e por isso afirmava D. João, que a cidade se
rendesse não haveria perseguições à população, mas que a conquista poderia
levar ao saque.
O discurso foi
proferido a seguir à cerimónia de assinatura do acordo entre D. Afonso
Henriques e os Cruzados para a conquista de Lisboa, realizada no dia 30 de
Junho, e o início do cerco à cidade acontecido no dia seguinte, 1 de Julho.
«Há já uns 358
anos ou até mais que tendes ilegitimamente nas vossas mãos cidades que são
nossas e a posse das nossas terras, anteriormente a vós habitadas por cristãos»
O Deus de paz e
de amor retire dos vossos corações a venda do erro e vos converta a si.
É que nós viemos
ao vosso encontro para vos falarmos de paz. Com a concórdia, efectivamente, as
coisas pequenas crescem, com a discórdia as maiores definham. Ora para que esta
não reine entre nós por todo o sempre é que vimos ter aqui convosco a fim de
chegarmos a uma conciliação.
Efectivamente, a
natureza gerou-nos a todos de um só e mesmo princípio, de tal modo que não
ficaria bem que, estando ligados por um pacto de solidariedade humana e por um
vínculo de concórdia da mãe de todos, nós vivêssemos desagradados uns com os
outros.
Nós, pela nossa
parte, não vimos a esta cidade, que está na vossa posse, para vos lançar fora
daqui nem para vos espoliar. Uma coisa tem, efectivamente, sempre consigo a
inata benignidade dos cristãos, é que, embora reivindique o que é seu, não
rouba o alheio. O território desta cidade reivindicamo-lo como sendo nosso por
direito; e, por certo, se em vós alguma vez tivesse medrado a justiça natural,
sem vos fazerdes rogados, com as vossas bagagens, com haveres e pecúlios, com
mulheres e crianças, vos poríeis a caminho da terra dos mouros de onde viestes,
deixando a nossa para nós.
É-nos, pelo
contrário, sobejamente conhecido que só a contragosto ou forçados a isso o
fareis. No entanto, procurai fazê-lo por vossa iniciativa, pois se aceitardes
de boa mente o que vos rogamos, estareis imediatamente a salvo das
consequências mais amargas do que pretendemos. Que tipo de conciliação se possa
estabelecer entre nós não o sei, pois a sorte que há-de caber a cada um não
está garantida a ninguém, à partida. Fostes vós que viestes da terra dos mouros
e dos moabitas e raptastes fraudulentamente o reino da Lusitânia a um rei vosso
e nosso (1) São inúmeras as depredações
que se fizeram e continuam ainda a fazer sobre cidades e aldeias com as suas
igrejas desde esse tempo até hoje. Por uma parte, ficou em causa a vossa
lealdade, por outra parte, ficou lesado o convívio em sociedade.
Há já uns 358
anos ou até mais (2) que tendes
ilegitimamente nas vossas mãos cidades que são nossas e a posse das nossas
terras, anteriormente a vós habitadas por cristãos a quem nenhuma espada de
exactor forçou a abraçar a fé, mas só a palavra da pregação tornou filhos
adoptivos de Deus, no tempo do nosso apóstolo Santiago e dos seus discípulos,
Donato, Torquato, Secundo, Indalécio, Eufrásio, Tesifonte, Victor, Pelágio e
muitos outros assinalados varões
apostólicos (3) Temos nesta cidade como testemunho o sangue derramado
pelo nome de Cristo no tempo do governador romano Daciano (4) por parte de mártires como Máxima,
Veríssimo e a virgem Júlia (5). Consultai
o concílio de Toledo celebrado no tempo de Sisebuto, glorioso rei nosso e
também vosso; é-nos testemunha Isidoro, arcebispo de Sevilha, e o bispo de
Lisboa desse tempo, Viérico, com mais de duzentos bispos de toda a Hispânia (6). Atestam-no ainda nas cidades
sinais manifestos das ruínas das igrejas (7).
Mas, dado que
tendes mantido a cidade ocupada em uso longo com propagação das vossas
estirpes, usaremos para convosco do habitual sentimento de bondade. Entregai
nas nossas mãos a guarnição do vosso castelo. Cada um de vós terá as liberdades
que tem tido até aqui. Não queremos, efectivamente, expulsar-vos dos vossos
assentamentos tão antigos; viva cada um segundo os seus costumes, a não ser que
espontaneamente queira vir aumentar a Igreja de
Deus (8).
Como observamos,
é riquíssima e bastante próspera a vossa cidade, mas está exposta à avidez de
muitos. Efectivamente, quantos arraiais, quantos navios, que multidão de gente
está em conjura contra vós! Tende em atenção a devastação dos campos e dos seus
frutos. Tende em atenção o vosso dinheiro. Tende ao menos em atenção o vosso
sangue. Aceitai a paz enquanto vos é favorável, pois é bem verdade que é mais
útil uma paz nunca posta em causa que outra que se refaz com muito sangue; de
facto, é mais agradável a saúde nunca alquebrada que a que foi recuperada
depois de graves doenças e sob ameaças de medidas forçadas e exigências
extremas para ficar a salvo. É grave e fatal a doença que vos atinge; outra
virá se não tomardes uma resolução salutar: ou ela se extingue ou vós sereis
extintos. Tomai cuidado, pois a rapidez apressa o fim. Cuidai da vossa
segurança enquanto tendes tempo.
Antigo, na
verdade, é o provérbio que diz: «na arena é que o gladiador forma o seu plano» (9). A partir de agora a resposta pertence-vos a vós, se assim vos
aprouver".
Notas ( de Aires
A. Nascimento ) :
1. A expressão
reflecte certamente a intenção de chamar a atenção para o que se pretende
fazer: restabelecer os direitos que nunca cessaram e por isso se invoca a figura
do rei, que não pode ser outro que Rodrigo, sacrificado por causa dos pecados
do seu povo, cuja expiação chegava agora ao fim, segundo interpretação da
própria Chronica Gothorum , pois os mouros eram escorraçados da Hispânia.
2. Faz notar Ch.
W David, ad loc., que a data de 789
corresponde ao tempo em que os muçulmanos consolidaram o seu domínio através da
acção de Abderramão I (756-788). Deverá reter-se que essa data, apresentada
como aproximativa, corresponde também ao período em que, segundo a Chronica
Gothorum, se situa a acção de Afonso I em campanhas sucessivas, contra os
mouros; a pretensão de recuperar a terra ocupada por outros retirava a estes a
legitimidade da posse.
3. Os «varões
apostólicos», ou fundadores das mais antigas igrejas episcopais hispânicas,
aparecem já em Actas escritas pelo séc. VIII. Os seus nomes são: Torquato, de
Acci (Guádix), Tesifonte, de Bergium (Bejar); Esício, de Carcer (Carcesa);
Indalécio, de Urci (Almería); Secundo, de Abula (Atila); Eufrásio, de Iliturgi
(Andújar) e Cecílio, de Illiberis (Elvira). Teriam sido enviados a Espanha por
Pedro e Paulo a partir de Roma. Tendo chegado a Acci, foram perseguidos pelos
pagãos, mas deles foram milagrosamente salvos, pois, quando eles corriam no seu
encalço, desabou uma ponte que atravessavam. Dispersaram-se eles pela região
hispânica a evangelizá-la. Foi-lhes dedicado um monumento em Guádix, onde todos
os anos lhes era prestado culto no dia 1 de Maio junto de uma oliveira que
florescia nesse dia. Esse culto espalhou-se e entrou nos martirológios,
calendários e livros litúrgicos. A legenda deriva certamente de tentativas mais
ou menos generalizadas de garantir apostolicidade para as diversas igrejas. Cf.
Dom Henri Quentin, Les Martyrologes
historiques du Moyen Âge, Paris, 1908, p. 102; J. Vives, "Varones
apostólicos", in Diccionario de
Historia Ecclesiástica de España, Madrid, 1975; J. Vives, "Tradición y
legenda en Ia hagiografia hispânica",
Hispania Sacra, 18, 1965, 495-508; Ángel Fábrega Grau, Pasionario Hispânico, Madrid, 1953, I,
125-130. A legenda deve ter tido ramificações, mas é praticamente impossível
seguir o seu percurso; é provável que sob o nome de Víctor pretenda João
Peculiar referir-se a S. Víctor de Braga, que, segundo o Pasionario Hispânico,
era apenas catecúmeno; sob o nome de Pelágio está certamente o célebre mártir
de Córdova do ano 925, cujo culto se difundiu rapidamente, chegando até ao Reno
e ganhando os favores da corte leonesa. Posteriormente, junta-se-lhe S. Pedro
de Rates como discípulo de Tiago, o qual teria sido o primeiro bispo de Braga;
na mesma sequência Basileu, também discípulo de Tiago, seria o fundador da
igreja do Porto. Para Évora já o Livro das Calendas da Sé de Coimbra, para o
dia 21 de Maio, mencionava o nome de Manços, que André de Resende admite como
tendo participado na entrada triunfal de Cristo em Jerusalém e acompanhado a
Última Ceia. Cf. Miguel de Oliveira, "Lendas apostólicas
peninsulares", in Lenda e História,
Lisboa, 1964, pp. 79-110; J. Fernández Catón,
San Mancio; culto, leyenda y religuias, León, 1983.
4. Ainda que a
forma do nosso manuscrito seja "Ageiano", esta costuma ser
interpretada como deformação de Daciano, nome que aparece habitualmente
consagrado nas actas dos mártires hispânicos, a partir certamente da antiga
legenda de S. Vicente de Valência; para os problemas levantados por este
"ciclo", cf. Baudouin de Gaiffier, "Sub Daciano praeside. Étude
sur les passions espagnoles",
Analecta Bollandiana, 72, 1954, 138-152, onde se contestam opiniões de
A. Fábrega Grau, Pasionario Hispánico,
Madrid, 1953,1, pp. 67-78. Quanto à figura histórica do governador hispânico,
às ordens de Diocleciano e Maximiano, aduz o mesmo autor que as notícias são
escassas e sobretudo inseguras, ainda que lhe tenha sido alegadamente atribuída
uma inscrição, pois esta não apresenta base de autenticidade: CIL, t. II, p.
5*, n.° 17; Act. SS., Oct., t. XII, p.
195; A. Périn, Totius latinitatis
onomasticon, I, p. 453; ThLL, Onomasticon, III, col. 8.
5. Note-se que o
nome dos mártires dado por D. João Peculiar difere do que atrás lhe havia sido
dado, mas as variantes são possíveis e podem significar que o cruzado não
intentou resolvê-las ou será também de admitir que as diferenças existiam nos
diversos calendários locais (sem que isso constituísse óbice de um mesmo
culto).
6. Há confusão
óbvia neste passo, pois não consta que tenha havido qualquer concilio em Toledo
no reinado de Sisebuto (612-621) e sob a presidência de Isidoro de Sevilha
(600-636) e muito menos com a presença de um bispo de Lisboa de nome Viárico;
de facto, este assiste ao IV Concílio de Toledo, em 633, ao tempo de Sisenando,
sendo um dos sessenta e seis bispos que assinam as actas, sob a presidência de
Isidoro, voltando a estar no V Concílio de Toledo, em 636, mas já sob a
presidência de Eugênio, e no seguinte, em 638. A referência ao concílio de
Toledo entra numa ordem de provas que não deixariam de ter importância para os
próprios interlocutores do lado muçulmano.
7. Aqui D. João
Peculiar não é tão concreto como o cruzado, pois este refere-se a uma igreja
dedicada aos mártires na zona de Campolide.
8. Note-se que,
pelo IV Concílio de Toledo, can. 57, se proibiam as conversões forçadas.
9. Cf.
Séneca, Ep. 22, 1. Na verdade, já o
escritor romano o apresenta como provérbio: «Diz um antigo provérbio que o
gladiador só forma o seu plano na arena a partir da observação do rosto do
adversário, do modo como mexe os braços, da própria postura do corpo».
Fontes :
Conquista de
Lisboa aos Mouros (1147) Osberno, trad. de José Augusto de Oliveira, pref. de
Augusto Vieira da Silva, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1935 (2.ª ed.,
1936);
Conquista de
Lisboa aos Mouros em 1147. Carta de um Cruzado inglês que participou nos
acontecimentos, apres. e notas de José da Felicidade Alves, Lisboa, Livros
Horizonte («Cidade de Lisboa, 4»), 1989;
A Conquista de
Lisboa aos Mouros. Relato de um Cruzado, ed., trad. e notas de Aires A.
Nascimento, introd. de Maria João V. Branco, Lisboa, Vega («Obras clássicas da
Literatura Portuguesa. Literatura Medieval, 96»), 2001
Ligações:
•D. João Peculiar, arcebispo de Braga
Entrada no «Portugal», Dicionário histórico.
•Conquista de
Lisboa aos Mouros
Carta que o cruzado R[aul] mandou a Osb[erto]
de Baldr[eseia] (Bawssey), descrevendo a conquista de Lisboa em 1147.
•Cerco de Lisboa
por D. Afonso Henriques
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