A ORFEU
Das tuas mãos divinas de Poeta
Herdei a lira que não sei tanger;
Por eleição ou maldição secreta,
Tenho uma grade para me prender.
Cercam-me as cordas, de emoção,
Versos de ferro onde me rasgo
inteiro.
Mas, do fundo da alma e da prisão,
Obrigado, meu Deus e carcereiro!
Na mitologia grega "Orfeu" era médico e poeta, tal como foi Miguel Torga.
É a esse deus mitológico que Torga dedica o poema com a afirmação de ter herdado a lira como ele costuma ser representando, afirmando que a não sabia tanger, para depois nos deixar expresso o sentimento de se sentir preso a uma grade de cordas, que são afinal os seus formidáveis versos de ferro, onde por inteiro o seu ser se consumia.
Eis, porque, na última estrofe parece ter-se esquecido do deus mitológico.
Volta-se para uma outra realidade e agradece ao Deus da História dos homens, o facto d'Ele ser o que é e por ser o carcereiro que, como costuma fazer com todos os homens lhe abriu todas as portas da prisão - de que o Poeta fala - mas, verdadeiramente, dela, nunca se sentiu libertado, porque os tais versos de ferro fizeram dele, voluntariamente, um prisioneiro assumido, possivelmente, porque não foram em vão os tempos que viveu no Seminário de Lamego, razão porque Deus não é uma palavra sem sentido na sua poesia e, muito menos, uma palavra morta.
Obrigado, meu Deus e carcereiro!
Este seu último verso é esclarecedor, porque a negação de Deus nunca foi definitiva na sua alma, pelo que, o Deus Eterno - que ele nunca malsinou - certamente a acolheu por ter dado dado vida a um ser interrogador que de modo algum fez de Deus um Nada na sua vida e se não foi um Tudo, foi algo pelo qual se inquietou e a Ele se sentiu preso por um influxo que aqui e ali aparece, qual centelha, na sua brilhante poesia.
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