in, http://www.rtp.pt/arquivo/
De profundis
Do profundo abismo em que me
achei,
E em que não me lembro se caí ou
fui precipitado,
Da lama fofa e a ferver de que
me cozi, clamei
A vós, Senhor, surdo e infinito:
Sejas tu neste grito
Para todo o sempre louvado.
Sejam vossos ouvidos atentos
(ah, Senhor,
Assim se diz, assim seja!)
A voz da minha culpa e do meu
nada -
Maior, neste clamor
E na miséria que esse olhar
deseja,
Que toda a coisa principiada.
O meu corpo é moído e ardente
Como a areia do deserto
De que o teu vento faz as ondas
da cegueira
Rotativa e lunar;
Tenho o meu lado aberto
Por uma lança rasteira,
E não por te imitar.
Aqui, das toalhas da aflição
Pela canalha rasgadas
E em minhas chagas embebidas,
Levanto o meu queixume,
Pura evaporação,
Secada pelo teu lume,
Em sangue e mijo molhadas,
Senhor, que me sujei na força da
agonia
E em minhas lágrimas me lavo,
Como um velhinho fazia
No catre do hospital, fedendo a
murta e alho bravo -
Uma argália nas partes, algodão
num ouvido:
Só por cima da colcha uma mosca
o afagava
Enquanto ele chorava,
Todo borrado e comovido.
Sim, daqui, deste abismo trivial
A que só as palavras dão
fundura,
A ti clamo.
Abre o meu pedernal,
Que a seca estéril rege;
Monda o vil coração com que te
amo
E, ainda que eu fraqueje,
Cava-me até ao fio de água pura.
Abre os seios dos meus ossos
E a cerração tenaz dos meus
tendões:
Assim se abrem os poços
Que dão de beber aos leões.
Aí, Senhor, a tua estrela,
Quanto mais podre eu for à tona,
Mais brilhará, profunda e bela
Como o luar e a beladona.
Recebe, Senhor, do abismo
Em que me engolfo e debato,
As lembranças agudas em que me
pico e cismo -
Meu remorso barato
Que o tempo vai tornando
Todo em cinza saudosa,
Minhas saudades peneirando
Com uma peneira de rosa.
Ah! Tu, Toiro de Fogo, e eu
lesma fria!
Tu, Roda de Navalhas retiradas
Das Sete Dores de tua Mãe!
Tu, Tubarão de Amor, e eu a
enguia
Que até as águas estagnadas
Têm!
Tu, Sol cortado a diamante,
Que lavra as terras, aprofunda o
dia,
Abre o mar ao navio confiante
E cerra a flor cansada e esguia,
Enquanto eu, o morrão grosso,
Encarquilhado, me escureço
E na fogueira do meu osso
Chamusco tudo o que te ofereço.
Mas, já levado nas areias
De que a minha alma faz moinha
E a tua cólera desdoba,
Hei-de enterrar a dor, farinha
Das minhas sementes feias,
Nos sete palmos de uma cova.
Abre, Senhor, teus flancos:
pare-me
(Que tu podes) outra vez,
E a chaga densa
Da minha outra vida sare-me!
A tua mão salgada e imensa
Como todos os mares comunicados
Já ressuscita a tua rês:
Ela me acene,
E à tua divina presença
Suba meus ossos branqueados.
Amen.
Vitorino Nemésio
Se Bem Me Lembro, é com enlevo mas com muita saudade que lembro este belo momento semanal de televisão que foi para o ar com este título entre os anos de 1969 a 1975 - onde o poder da palavra do Prof. Vitorino Nemésio encheu o pequeno ecran da RTP - e, no qual, a paixão pela palavra, o gesto e o modo como comunicava deixou até hoje, um vazio.
"De profundis" é um poema-oração comovente pelo poder da linguagem do homem que na súplica que dirige a Deus do fundo do seu precipício, diz de um forma clara, concisa o perdão que lhe merece o que chamuscando tudo o que oferece à divindade, ainda assim, se lhe dirige, repeso mas confiante:
"De profundis" é um poema-oração comovente pelo poder da linguagem do homem que na súplica que dirige a Deus do fundo do seu precipício, diz de um forma clara, concisa o perdão que lhe merece o que chamuscando tudo o que oferece à divindade, ainda assim, se lhe dirige, repeso mas confiante:
A vós, Senhor, surdo e infinito:
Sejas tu neste grito
Para todo o sempre louvado.
E no desejo de estar no final da vida, junto da divina presença, termina o poema - oração como começa o salmista do "De profundis", com a sua súplica individual plasmada no salmo 130(129), porque é do fundo de si mesmo que ele se eleva para as alturas:
1Cântico das peregrinações.
Do fundo do abismo clamo a ti,
SENHOR!
2Senhor, ouve a minha prece!
Estejam teus ouvidos atentos
à voz da minha súplica!
3Se tiveres em conta os nossos pecados,
Senhor, quem poderá resistir?
4Mas em ti encontramos o perdão;
por isso te fazes respeitar.
5Eu espero no SENHOR! Sim, espero!
A minha alma confia na sua palavra.
(...)
Sem comentários:
Enviar um comentário