Coimbra, 26 de Janeiro e 1986 - Eleições presidenciais. Por dever cívico e condicionado pela triste realidade política nacional, lá meti na urna um voto descorçoado, quase que a lamentar não ter nascido súbdito de uma majestade qualquer que nunca fosse da minha responsabilidade.
in, DIÁRIO XVI
No tempo a que Miguel Torga se refere ocorreram as eleições para a chefia do Estado a que concorreram o recentemente falecido Dr. Mário Soares e Prof. Diogo Freitas do Amaral e sobre as quais, pelos vistos a contragosto, Miguel Torga - só por dever cívico - colocou o seu voto na urna eleitoral, o que prova à saciedade o fastio que então lhe causava a triste realidade política nacional, a ponto de o levar a declarar não ter nascido em tempos monárquicos, onde não teria de arcar com a responsabilidade que lhe dava o seu voto.
Leio este pequeno texto de Miguel Torga e fico a pensar como é que um homem tão ilustre, cidadão dos mais impolutos que nasceram em Portugal vivia descorçoado doze anos depois do derrube do Estado Novo!
Leio este pequeno texto de Miguel Torga e fico a pensar que, tal como ele, também eu desejaria ter nascido nos tempos de uma majestade qualquer, para não ter remorsos do meu voto, responsabilizando-me, me tenha dado algumas dores de cabeça, só porque, entendo como um dever inalienável, quando chamado pelos cadernos eleitorais ter de descarregar o meu nome, para depois assistir ao que tenho assistido.
Leio este pequeno texto de Miguel Torga e fico a pensar nos maus tratos que têm sido dados ao meu voto, porque me continuam a acenar com rosas e, depois, despudoradamente, só tenho visto espinhos.
Leio este pequeno texto de Miguel Torga e fico a pensar na minha pouca importância desde o momento em que o meu voto caiu na urna, porque a isso chamado no cumprimento do meu dever de cidadão, depois tenho deixado de contar.
Leio este pequeno texto de Miguel Torga e fico a pensar que a nossa classe política ainda não aprendeu a sentir o peso do meu voto - e dos demais - porque, como aconteceu nas últimas eleições presidenciais, quando eu pensava que ia escolher alguém que arbitrasse, imparcialmente, ademais, havendo um jogo ilícito perante o povo e só lícito pela junção de votos de eleitores que foram chamados a votar desgarrados e, depois, sem que o povo se tivesse apercebido, se uniram - me desiludiu.
A Democracia - creio eu - é a escolha de uma maioria apontada aos eleitores antes do voto cair na urna e não o usar para o juntar com outros depois da consulta eleitoral para fazer uma maioria nascida fora do tempo eleitoral.
Leio este pequeno texto de Miguel Torga e penso como ele: porque não nasci eu, súbdito de uma majestade qualquer e me continue a desgastar nesta terceira República que me pede o meu voto, me responsabiliza com ele e, depois esquece que é com a força dele que me sinto fraco, impotente, descorçoado, como se sentiu o grande transmontano de São Martinho de Anta.
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