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segunda-feira, 29 de junho de 2015

Dois poemas de Almeida Garrett (1799-1854)


                                                                       
                                                                                            Gravura publicada pela Revista 
                                                                     "Occidente" nº 24 de 15 de Dezembro de 1878


A colectânea de poesias "Folhas Caídas" foram publicadas em 1853 tendo merecido do seu autor uma justificação, advertindo os leitores que mesmo no Inverno da vida - Almeida Garrett tinha então 54 anos - havia de ser-se poeta até ao fim.

Com o Poeta assim aconteceu. A morte ceifou-o no ano seguinte ao da publicação deste livro emblemático, deixando-nos a pensar do motivo porque naquela idade já se sentia no Inverno da vida, algo que nunca saberemos.

Testemunho que é de um grande homem que ele foi, na vida política e literária, bem merece a transcrição que a seguir se apresenta da "Advertência" com que abre as "Folhas Caídas" fazendo jus à fidelidade do seu pensamento e, sobretudo, à verdade que nos quis deixar.



Antes que venha o Inverno e disperse ao vento essas folhas de poesia que por aí caíram, vamos escolher uma ou outra que valha a pena conservar, ainda que não seja senão para memória.
A outros versos chamei eu já as últimas recordações da minha vida poética. Enganei o público, mas de boa-fé, porque me enganei primeiro a mim. Protestos de poetas que sempre estão a dizer adeus ao mundo, e morrem abraçados com o louro - às vezes imaginário, porque ninguém os coroa.

Eu pouco mais tinha de vinte anos quando publiquei certo poema, e jurei que eram os últimos versos que fazia. Que juramentos!
Se dos meus se rirem, têm razão; mas saibam que eu também primeiro me ri deles. Poeta na primavera, no estio e no outono da vida, hei-de sê-lo no inverno, se lá chegar, e hei-de sê-lo em tudo. Mas dantes cuidava que não, e nisso ia o erro.

Os cantos que formam esta pequena colecção pertencem todos a uma época de vida íntima e recolhida que nada tem com as minhas outras colecções.
Essas mais ou menos mostram o poeta que canta diante do público. Das Folhas Caídas ninguém tal dirá, ou bem pouco entende de estilos e modos de cantar.

Não sei se são bons ou maus estes versos; sei que gosto mais deles do que de nenhuns outros que fizesse. Porquê? É impossível dizê-lo, mas é verdade. E, como nada são por ele nem para ele, é provável que o público sinta bem diversamente do autor. Que importa?
Apesar de sempre se dizer e escrever há cem mil anos o contrário, parece-me que o melhor e mais recto juiz que pode ter um escritor é ele próprio, quando o não cega o amor-próprio. Eu sei que tenho os olhos abertos, ao menos agora.

Custa-lhe a uma pessoa, como custava ao Tasso, e ainda sem ser Tasso, a queimar os seus versos, que são seus filhos; mas o sentimento paterno não impede de ver os defeitos das crianças.
Enfim, eu não queimo estes. Consagrei-os ignoto deo. E o deus que os inspirou que os aniquile, se quiser: não me julgo com direito de o fazer eu.

Ainda assim, no ignoto deo não imaginem alguma divindade meia velada com cendal transparente, que o devoto está morrendo que lhe caia para que todos a vejam bem clara. O meu deus desconhecido é realmente aquele misterioso, oculto e não definido sentimento de alma que a leva às aspirações de uma felicidade ideal, o sonho de oiro do poeta.

Imaginação que porventura se não realiza nunca. E daí, quem sabe? A culpa é talvez da palavra, que é abstracta de mais. Saúde, riqueza, miséria, pobreza e ainda coisas mais materiais, como o frio e o calor, não são senão estados comparativos, aproximativos. Ao infinito não se chega, porque deixava de o ser em se chegando a ele.

Logo o poeta é louco, porque aspira sempre ao impossível. Não sei. Essa é uma disputação mais longa. 
Mas sei que as presentes Folhas Caídas representam o estado de alma do poeta nas variadas, incertas e vacilantes oscilações do espírito, que, tendendo ao seu fim único, a posse do Ideal, ora pensa tê-lo alcançado, ora estar a ponto de chegar a ele, ora ri amargamente porque reconhece o seu engano, ora se desespera de raiva impotente por sua credulidade vã.
Deixai-o passar, gente do mundo, devotos do poder, da riqueza, do mando, ou da glória. Ele não entende bem disso, e vós não entendeis nada dele.
Deixai-o passar, porque ele vai onde vós não ides; vai, ainda que zombeis dele, que o calunieis, que o assassineis. Vai, porque é espírito, e vós sois matéria.

E vós morrereis, ele não. Ou só morrerá dele aquilo em que se pareceu e se uniu convosco. E essa falta, que é a mesma de Adão, também será punida com a morte.
Mas não triunfeis, porque a morte não passa do corpo, que é tudo em vós, e nada ou quase nada no poeta.


As "Folhas Caídas" respeitam, como se pode ver, de uma época da sua vida íntima, onde  -é ele que o diz - consagrou os seus versos ao Ignoto Deo, envolvendo-O num manto de mistério,  e no impossível de que ele nos fala não se inibe de dizer que o poeta é louco, o que, para quem o queira entender, as poesias deste livro correspondem a estados de alma e sem escusar de nos dar uma explicação mais concisa, logo acrescenta: nas variadas, incertas e vacilantes oscilações do espírito, que é algo de que damos conta à medida que vamos lendo os seus poemas.

Como acontece com os grandes Poetas, neles só o corpo é mortal.
A sua poesia, não!
Vejamos dois exemplos desta asserção:


IGNOTO DEO

D.D.D.

Creio em ti, Deus: a fé viva
De minha alma a ti se eleva.
És - o que és não sei. Deriva
Meu ser do teu: luz... e treva,
Em que - indistintas! - se envolve
Este espírito agitado,
De ti vem, a ti devolve.
O Nada, a que foi roubado
Pelo sopro criador
Tudo o mais, o há-de tragar.
Só vive de eterno ardor
O que está sempre a aspirar
Ao infinito donde veio.
Beleza és tu, luz és tu,
Verdade és tu só. Não creio
Senão em ti; o olho nu.
Do homem não vê na terra
Mais que a dúvida, a incerteza,
A forma que engana e erra.
Essência!, a real beleza,
O puro amor - o prazer
Que não fatiga e não gasta...
Só por ti os pode ver
O que inspirado se afasta,
Ignoto Deus, das ronceiras,
Vulgares turbas: despidos
Das coisas vãs e grosseiras
Sua alma, razão, sentidos,
A ti se dão, em ti vida,
E por ti vida têm. Eu, consagrado
A teu altar, me prosto e a combatida
Existência aqui ponho, aqui votado
Fica este livro – confissão sincera
Da alma que a ti voou e em ti só ‘spera.


É a este Deus Desconhecido - ao pés do qual depõe as "Folhas Caídas" que ele se entrega, aspirando chegar ao infinito donde veio, entregando-lhe  a confissão sincera da sua alma, razão suficiente para lermos com o desvelo que pudemos cada um dos seus versos na sinceridade como a sua mente os concebeu.


AVE, MARIA

Maria, doce Mãe dos desvalidos,
A ti clamo, a ti brado!
A ti sobem, Senhora, os meus gemidos,
A ti ó hino sagrado
Do coração de um pai voa, ó Maria,
Pela filha inocente.
Com sua débil voz que balbucia,
Piedosa mãe clemente,
Ela já sabe, erguendo as mãos tenrinhas,
Pedir ao Pai dos Céus
O pão de cada dia. As preces minhas
Como irão ao meu Deus,
Ao meu Deus que é teu filho e tens nos braços,
Se tu, mãe de piedade,
Me não tomas por teu? Oh!, rompe os laços
Da velha humanidade;
Despe de mim todo outro pensamento
E vã tenção da Terra;
Outra glória, outro amor, outro contento
De minha alma desterra.
Mãe, oh!, Mãe, salva o filho que te implora
Pela filha querida.
De mais tenho vivido, e só agora
Sei o preço da vida,
Desta vida, tão mal gasta e prezada
Porque minha só era...
Salva-a, que a um santo amor está votada,
Nele se regenera.



Todos nós, algum dia, teremos erguido as mãos a Maria, à doce mãe dos desvalidos como o Poeta lhe chama para acudir a um filho doente.
É isto que encontramos em cada um dos versos desta invulgar - AVE MARIA - espelhada na aflição de Almeida Garrett, que num dado momento da sua oração de súplica, fala deste modo:
Despe de mim todo outro pensamento
E vã tenção da Terra; 

E é, a esta luz que se pressente na manifestação de abandono das coisas da Terra - sempre vãs se nelas não pomos a beleza do espírito - que o Poeta na sua verdade, olhando a vida, tão mal gasta e prezada, nos dá a sabedoria de que, num dia qualquer tomamos consciência, vivendo a vida - mal gasta - sendo que é, ao mesmo tempo, tão prezada, porque só temos uma para viver... e gastá-la mal gasta é um desperdício.


Mãe, oh!, Mãe, salva o filho que te implora
Pela filha querida.
De mais tenho vivido, e só agora
Sei o preço da vida,
Desta vida, tão mal gasta e prezada
Porque minha só era...
Salva-a, que a um santo amor está votada,
Nele se regenera.


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