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quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

"O Velho, o Rapaz e o Burro"


O Velho, o Rapaz e o Burro 

O Mundo ralha de tudo,
Tenha ou não tenha razão,
Quero contar uma história
Em prova desta asserção.

Partia um velho campónio
Do seu monte ao povoado,
Levava um neto que tinha
No seu burrinho montado:

Encontra uns homens que dizem:
"Olha aquela que tal é!
Montado o rapaz que é forte,
E o velho trôpego a pé."

"Tapemos a boca ao mundo",
O velho disse: "Rapaz,
Desde do burro, qu'eu monto,
E vem caminhando atrás."

Monta-se, mas dizer ouve:
"Que patetice tão rata
O tamanhão de burrinho,
E o pobre pequeno à pata."

"Eu me apeio", dis prudente
O velho de boa fé.
"Vá o burro sem carrego
E vamos ambos a pé."

Apeiam-se, e outros lhe dizem:
"Toleirões, calcando lama!
De que lhes serve o burrinho?
Dormem com ele na cama?"

"Rapaz", diz o bom do velho,
"Se de irmos a pé murmuram,
Ambos no burro montemos,
A ver se inda nos censuram".

Montam, mas ouvem de um lado:
"Apeiem-se, almas de breu,
Querem matar o burrinho?
Aposto que não é seu."

"Vamos ao chão", diz o velho,
"Já não sei qu'ei-de fazer!
O mundo está de tal sorte,
Que se não pode entender.

É mau se monto no burro,
Se o rapaz monta mau é.
Se ambos montamos, é mau,
E é mau se vamos a pé:

De tudo me têm ralhado,
Agora que mais me resta?
Peguemos no burro às costas,
Façamos inda mais esta."

Pegam no burro: o bom velho
Pelas mãos o ergue do chão,
Pega-lhe o rapaz nas pernas,
E assim caminhando vão.

"Olhem dois loucos varridos!",
Ouvem com grande sussuro,
"Fazendo mundo às avessas,
Tornados burros do burro!"

O velho então pára e exclama:
"Do qu'observo me confundo!
Por mais qu'a gente se mate
Nunca tapa a boca ao mundo.

Rapaz, vamos como dantes,
Sirvam-nos estas lições;
É mais que tolo quem dá
Ao mundo satisfações."

Curvo Semedo

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Quem se não recorda desta deliciosa história?

Foi contada em verso de sete sílabas métricas por Curvo Semedo, um notável poeta português de Montemor-o-Novo, fidalgo da Casa Real e um vulto de proa do Movimento literário "Nova Arcádia onde usava o nome de Belmiro Transtagano, a quem as Letras Portuguesas devem uma notável obra poética e a tradução das fábulas de Jean de La Fontaine.

Curvo Semedo, infelizmente, é um nome quase esquecido mercê de um alheamento que é feito pelas instâncias superiores do Estado - não só do que sucedeu no pós 25 de Abril - como no de tempos passados em que a cultura, ou tinha laivos de engrandecer o Estado Novo, ou era posta a um canto.

E assim continua...

Portugal, ao nível do Estado, nos aspectos culturais da Literatura, nunca foi - salvo as excepções - um País grato aos homens que nele nasceram e como Curvo Semedo se agigantaram pela sua cultura, devendo honrar a sua memória, tornando-os presente nas gerações mais novas.

Bem sei como é pobre a minha lembrança, mas é uma razão que me leva a publicar este poema encantador, em que o Poeta nos diz como é difícil "tapar a boca" à maledicência gratuita.do mundo.

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