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segunda-feira, 29 de maio de 2017

Por pensar, mais uma vez, em Miguel Torga...


Se atendesse às suas exortações e solicitações, deixaria de ser quem sou. Onde um quer o sucesso, o outro quer a liberdade. A liberdade solitária a que se condena um mortal responsável mas descomprometido. Não foi para triunfar que vim ao mundo; foi para ter a consciência de inanidade  de todos os triunfos,

in, "Diário XIV"
Coimbra, 14 de Dezembro de 1984 - Sim, fui um infeliz porque tive a sina de ser autêntico.




Dei, hoje, com este pedaço belíssimo de uma prosa como poucas tem havido em Portugal, de um senhor que trouxe para qualquer parte do mundo onde viveu os ares balsâmicos de sua terra transmontana e, como se já não me bastasse o texto, sobretudo a sua parte final - onde, penso, Deus não quis fazer a vontade ao Poeta - para lhe dar depois de finado aquilo que ele conquistou, fazendo que o seu nome mereça a vaidade de um povo que se honra de ter tido no seu seio um doa mais brilhantes expoentes da Literatura Portuguesa do século XX.

Comove-me a frase que vem exposta a seguir à data da redacção desta sua reflexão cheia de uma verdade que ele nunca soube iludir na sua vida, considerando-se "infeliz" por ter tido a "sina de ser autêntico", mas foi à luz desta constatação sincera que a minha mente se debruçou sobre o problema da VAIDADE humana e me levou até ao Livro bíblico do Eclesiastes que logo a abrir nos chama a atenção para a vaidade - INANIDADE como Torga lhe chamou .- das glórias humanas, quando, afinal, a vida passa e a terra permanece sempre... o Sol nasce e põe-se... e todos os rios continuam a correr para o mar... e apenas o homem com todas as suas vaidades morre e não volta mais.

Atentemos no que diz no Cap, 1 do Livro do Eclesiastes:


Ilusão das ilusões: tudo é ilusão.
Que proveito pode tirar o homem de todo o esforço que faz debaixo do Sol?
Uma geração passa, outra vem; e a terra permanece sempre.

O Sol nasce e o Sol põe-se e visa o ponto donde volta a despontar.
O vento vai em direcção ao sul, depois ruma ao norte;
e gira, torna a girar e passa,
e recomeça as suas idas e vindas.
Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche.

Para onde sempre correram, continuam os rios a correr.
Todas as palavras estão gastas, o homem não consegue já dizê-las.
A vista não se sacia com o que vê, nem o ouvido se contenta com o que ouve.
Aquilo que foi é aquilo que será;
aquilo que foi feito, há-de voltar a fazer-se:
e nada há de novo debaixo do Sol!

Se de alguma coisa alguém diz: «Eis aí algo de novo!»,
ela já existia nas eras que nos precederam.
Não há memória das coisas antigas;
e também não haverá memória do que há-de suceder depois;
nem ficará disso memória entre aqueles que hão-de vir mais tarde.


Miguel Torga, fisicamente, não volta mais, mas porque levou a bom porto a Palavra do Livro do Eclesiastes, tendo sido um modelo de virtudes humanas onde a VAIDADE nunca teve lugar - podendo-o ter tido - porque ele foi um gigante . e embora modestamente tenha escrito - não foi para triunfar que vim ao mundo - talvez, por isso, Deus, cuja ideia lhe encheu a sua procura durante a vida terrena - deu-lhe o merecido prémio de o lembramos na pureza mais nobre dos seus ideais humanos, que foi a liberdade solitária a que se condenou, como ele mesmo no-lo diz no pequeno, belo e autêntico texto que nos deixou desde Coimbra onde teve o seu consultório de médico.

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