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domingo, 27 de outubro de 2013

Falta-nos ver como as crianças!




Crescemos demais!
Eis o erro de muitos de nós, adultos, quando, se fôssemos sábios - como tantos de nós dizemos que somos - devíamos ter a inteligência de não termos deixado morrer a criança que fomos, um dia.
Devíamos ser julgados por esse "crime" e sê-lo severamente, porque todo o adulto que se esqueceu de ter sido criança, de ter corrido sem ir à procura de nada - mas só pelo gosto de querer chegar mais além, olhar para trás e admirar-se do espaço percorrido - de ter jogado "ao lenço"; "á cabra cega"; "ao eixo"; "às esconidas"; à bola jogada contra a parede quando faltou o companheiro, etc., isto é, todo aquele que se esqueceu que um dia foi "rei" ou "rainha" e teve o séquito dos pais e avós, é forçoso deixar de lado as leituras imbecis dos jornais que não falam das crianças, dedicando-lhe um espaço, e deitem os olhos sobre este pedaço de prosa que o Poeta Eugénio de Andrade intitulou: Em Louvor das Crianças,  no sentido de se tentar mudar este mundo, e tentar vê-lo com os olhitos arregalados e encantados das crianças que fomos:

 
Se há na terra um reino que nos seja familiar e ao mesmo tempo estranho, fechado nos seus limites e simultaneamente sem fronteiras, esse reino é o da infância. A esse país inocente, donde se é expulso sempre demasiado cedo, apenas se regressa em momentos privilegiados — a tais regressos se chama, às vezes, poesia. Essa espécie de terra mítica é habitada por seres de uma tão grande formosura que os anjos tiveram neles o seu modelo, e foi às crianças, como todos sabem pelos evangelhos, que foi prometido o Paraíso.

 A sedução das crianças provém, antes de mais, da sua proximidade com os animais — a sua relação com o mundo não é a da utilidade, mas a do prazer. Elas não conhecem ainda os dois grandes inimigos da alma, que são, como disse Saint-Exupéry, o dinheiro e a vaidade. Estas frágeis criaturas, as únicas desde a origem destinadas à imortalidade, são também as mais vulneráveis — elas têm o peito aberto às maravilhas do mundo, mas estão sem defesa para a bestialidade humana que, apesar de tanta tecnologia de ponta, não diminui nem se extingue.

 
 O sofrimento de uma criança é de uma ordem tão monstruosa que, frequentemente, é usado como argumento para a negação da bondade divina. Não, não há salvação para quem faça sofrer uma criança, que isto se grave indelevelmente nos vossos espíritos. O simples facto de consentirmos que milhões e milhões de crianças padeçam fome, e reguem com as suas lágrimas a terra onde terão ainda de lutar um dia pela justiça e pela liberdade, prova bem que não somos filhos de Deus.
 
in, "Rosto Precário"

 
Meditemos neste texto.
Sobretudo nas seguintes palavras, quando o Poeta nos diz - pondo a criança no centro - que a sua relação com o mundo não é o da utilidade, mas a do prazer, e, depois, pensemos no inverso da atitude que temos com o mundo que a nossa inteligência e a nossa vaidade criou, onde antes de tudo o mais, o jogo que fazemos com esse mundo, é  o da sua utilidade, mas em primeiro lugar - o da sua utilidade para nós mesmos - pois só com esse desiderato conseguido é que encontramos prazer.
Falta-nos, por isso mesmo, ver como as crianças...
E é, desta falta de visão que nascem todas as guerras, todos os conflitos, todas as amarguras e todos os delitos, porque deixámos morrer a criança que fomos.

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