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domingo, 9 de abril de 2017

"Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?"


Tudo começou em Domingo de Ramos....



A Igreja Apostólica Romana com a entrada de Jesus em Jerusalém - a que a Liturgia denominou "Domingo de Ramos", tendo em conta os ramos de palmeiras empunhados pela multidão que acompanhou o cortejo que em festa saudou a entrada de Jesus, é uma Festa móvel celebrada todos os anos no Domingo que antecede o Domingo de Páscoa - insere na Liturgia deste Domingo o Salmo 22 (21).

Dá-se, com ele e as restantes Palavras de todas as leituras litúrgicas o início da Semana Santa e é, por isso, que este Salmo é cantado com a intenção de introduzir desde este momento o clima vivencial da Semana Maior que lembra a Morte e Ressurreição do Filho de Deus.

Convém frisar - para os menos atentos - que a exclamação de Jesus: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste" não é de alguma perplexidade ou angústia dirigida a Deus, como se lhe fizesse sentir um "abandono", mas é, literalmente, a recitação de um velho Salmo do rei David, rei de Judá e de Israel, que viveu entre os anos 1003 a 971 antes de Cristo, e que Jesus bem conhecia da leitura que era feita nas sinagogas.

Não é, por isso, aceitável a ideia que em alguns meios menos cultos das Escrituras, senão malévolamente, se diga que naquele Acto Supremo em que Jesus Crucficado antes de expirar, apresentou a Deus estas Palavras como se traduzissem um queixume,

Do LIVRO DOS SALMOS reproduz-se na íntegra a primeira das três partes em que o Salmo 22 - de acordo com numeração hebraica -  e (21) - de acordo com a versão da Vulgata - é dividido.

1 - Ao Director do coro. Pela melodia «A corça da aurora».
Salmo de David.

2 - Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste,
rejeitando o meu lamento, o meu grito de socorro?
3 - Meu Deus, clamo por ti durante o dia e não me respondes;
durante a noite, e não tenho sossego.

4 - Tu, porém, és o Santo
e habitas na glória de Israel.
5 - Em ti confiaram os nossos pais;
confiaram e Tu os libertaste.
6 - A ti clamaram e foram salvos;
confiaram em ti e não foram confundidos.

7 - Eu, porém, sou um verme e não um homem,
o opróbrio dos homens e o desprezo da plebe.
8 - Todos os que me vêem escarnecem de mim;
estendem os lábios e abanam a cabeça.
9 - «Confiou no SENHOR, Ele que o livre;
Ele que o salve, já que é seu amigo.»

10 - Na verdade, Tu me tiraste do seio materno;
puseste-me em segurança ao peito de minha mãe.
11 - Pertenço-te desde o ventre materno;
desde o seio de minha mãe, Tu és o meu Deus.
12 - Não te afastes de mim, porque estou atribulado
e não há quem me ajude.
(...)

Não havia de ficar indiferente a este Salmo o poeta, sacerdote e teólogo nicaraguense Ernesto Cardenal, que, tendo-se servido do antiquíssimo lamento do rei David, no-lo apresenta do seguinte modo, numa linguagem actual, mas cheia de sentido, onde não falta o lamento secular dos seus irmãos num tempo agitado vivido na Nicarágua e em que ele, à revelia da Igreja Católica, seguiu uma linha que lhe mereceu alguns reparos, sem contudo deixar de ser importante a arte poética de que ele e serviu para lembrar aquela frase de Jesus dita  do alto da Cruz, a culminar um acto começado em Domingo de Ramos:

Meu Deus meu Deus por que me abandonaste?
Sou uma caricatura de homem
o desprezo do povo
Riem de mim em todos os jornais.

Rodeiam-me os tanques blindados
estou sendo apontado pelas metralhadoras
e encerrado em cercas de arame farpado
as cercas eletrificadas
Todo dia me fazem chamada
Tatuaram-me um número
Fotografaram-me dentro da cerca
e é possível contar meus ossos
como numa radiografia.

Levaram-me todos os documentos de identidade
Conduziram-me nu ante a câmara de gás
e se compartiram minhas roupas e meus sapatos
Grito pedindo morfina e ninguém me ouve
grito sob a camisa de força
grito a noite inteira no asilo de doidos
na sala dos doentes incuráveis
no corredor dos enfermos contagiosos
no asilo de velhos
agonizo banhado de suor na clínica do psiquiatra
afogo-me na câmara de oxigénio
choro na delegacia
no pátio da prisão
no quarto de torturas
no orfanato
estou contaminado de radioatividade
e ninguém se aproxima para não se contagiar.

Mas eu poderei falar de Ti aos meus irmãos
Eu Te elevarei na reunião de nosso povo
Ecoarão os meus hinos no meio de um grande povo
Os pobres terão um banquete
O nosso povo celebrará uma grande festa
O povo novo que vai nascer

Salmo 21
in, Breve Antologia da Poesia Cristã Universal
Organização de Sammis Reachers
Tradução de Thiago de Mello

Dá que pensar como Erneso Cardenal com a sua arte poética burilou o velho Salmo do rei David, possivelmente, por aquilo que aconteceu com a sua participação na Revolução de Abril de 1954 contra Anatácio Somosa Garcia,  um golpe falhado que terminou com a more de muitos dos seus amigos e companheiros, e em que ele, cheio de coragem, tendo sobrevivido, e sem se esquecer de Deus, lhe diz: 

Mas eu poderei falar de Ti aos meus irmãos
Eu Te elevarei na reunião de nosso povo
Ecoarão os meus hinos no meio de um grande povo
Os pobres terão um banquete
O nosso povo celebrará uma grande festa
O povo novo que vai nascer.

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