Hosana!
Bendito o que vem em Nome do Senhor!
Socorro-me de uma pequena parte do Capítulo II do Sermão do Dia de Ramos pregado em 1656 pelo Padre António Vieira, para deixar este apontamento eclesial, certo que não podia ter escolhido melhor cultor dos textos sagrados, sendo meu desejo, não deixar passar este Dia em que o Cordeiro Pascal entrou em Jerusalém, convicto que n'Ele se cumpriam as velhas profecias que apontavam, havia séculos, a imolação do Filho de Deus para dar lugar a um Tempo Novo.
(…)
Começou a chover o dilúvio de
Noé: alagaram-se na primeira semana os vales e os quartos baixos dos edifícios;
subiram-se os homens aos quartos altos. Choveu a segunda semana; venceram as
águas os quartos altos, subiram-se aos telhados. Choveu a terceira semana:
sobrepujou o dilúvio os telhados, subiram-se às torres. Choveu a quarta semana:
ficaram debaixo das águas as torres e as ameias mais altas, subiram-se aos
montes. Choveu a quinta semana: ficaram também afogados os montes, subiram-se
finalmente às árvores, e assim estavam suspensos e pegados nos ramos. Postos
neste estado os homens, já não tinham para onde subir, e não lhes restava mais
que uma de duas: ou nadar, ou acolher-se à Arca, ou deixar-se afogar e perecer
no dilúvio. Oh! se nos víssemos bem neste grande espelho! E quantos de nós
estamos hoje no mesmo estado!
Desde o princípio da Quaresma
começou Deus a querer-nos conquistar as almas, e nós sempre a retirar e a fugir
de Deus de semana em semana.
Passou a primeira semana da
Quaresma, guardamo-nos para a segunda; passou a segunda, deixamo-nos para a
terceira; passou a terceira, esperamos para a quarta; passou a quarta,
dilatamo-nos para a quinta; passou a quinta, apelamos para a sexta; já estamos
na sexta e na última semana deste dilúvio espiritual, já estamos, como os do
outro dilúvio, com as mãos nos ramos das árvores, ou com os ramos das árvores
nas mãos: "Caedebant ramos de arboribus".
(1)
Em dia de ramos estamos, e
chegados a este dia e a esta semana precisa, em que não há já para onde
retirar, que é o que nos resta? Ou afogar e perecer, ou resolver e nadar para a
Arca. Os daqueloutro dilúvio não podiam nadar nem salvar-se na Arca de Noé, uns
porque estavam muito longe, outros porque não sabiam dela, e todos porque a
Arca não tinha mais que uma porta, e essa estava fechada por fora, e tinha Deus
levado as chaves, como diz o texto. Cá no nosso dilúvio não é assim. O Noé é
Cristo, Salvador e reparador do mundo, e a Arca em que salvou o gênero humano é
a sua cruz. Assim lhe chama a Igreja no hino corrente deste tempo: "Atque portum praeparare Arca mundo naufrago".
(2)
O antigo Noé não tinha porta por
onde recolher os que se quisessem valer da Arca; mas o nosso Noé divino está
com cinco portas abertas, e abertas em si mesmo, para recolher e salvar todos
os que se quiserem valer dele e de sua cruz. Oh! que diferente dilúvio é este
daquele! Naquele morreram todos os homens, e salvou-se só Noé; neste morreu e
afogou-se só o divino Noé: "Veni in
altitudinem maris, et tempestas demersit me" (3) para que todos os homens
se salvem. Os que pereceram naquele dilúvio são os que não se quiseram
persuadir, e se foram dilatando até que não tiveram remédio.
E será bem que nós, chegados a
este dia, ainda nos dilatemos mais, e pereçamos
como eles? Perecer não, cristãos, pelo que nos merece o amor de Cristo e
suas santíssimas chagas. Aproveitemo-nos ao menos destes poucos dias da Semana
Santa, já que dos de toda a Quaresma nos não soubemos aproveitar.
(…)
(1) - Cortavam ramos de árvores
(Mt. 21, 8).
(3) - Cheguei ao alto-mar, e a tempestade me
submergiu (Sl. 68, 3).
(3) - Eis aqui agora o tempo aceitável (2 Cor. 6,
2).
Padre António Vieira
in, Capítlo II do Sermão do Dia
de Ramos (1656)
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