NOIVA
Tive notícias hoje a teu
respeito:
«Vai ser pedida. Casa qualquer
dia».
E o coração tranquilo no meu
peito
–Continuou a bater como batia…
Surpreso duma tal serenidade,
Todo eu, intimamente, me
sondava:
Pois nem ciúme? Nem sequer
saudade?!
–E nem ciúmes, nem saudade
achava…
Saudades, não; que o teu amor
antigo
Guardam-no as cinzas (neste
coração)
Como em Pompeia aqueles grãos de
trigo
Que após centenas d’anos deram
pão…
Saudades! Mas de quê?! Pois não
sei eu
A lei antiga como o proprio
mundo
De que o prazer mal chega, já
morreu,
E só a dor nas almas cava fundo?
Causei-te longas horas de
amargura,
Não consegues voltar a ser
feliz;
A chaga que te abri não terá
cura,
E se curar - lá fica a cicatriz.
À luz dum juramento que traíste
Tu has de vêr-me toda a vida
pois.
Ergueste-o a Deus num dia amargo
e triste
E Deus casou-nos esse dia, aos
dois…
Ciúmes também não, por te
venderes.
Desgraçadinha! Antes te
houvesses dado;
Não descerias tanto entre as
mulheres,
Seria mais humano o teu peccado.
Porém, embora a tua falta
aponte,
P’ra mim és a que foste (ou que
eu supus);
O sol desapparece no horisonte
–E a gente vê-o ainda a dar-nos
luz…
Pode a desgraça erguer em frente
a mim
Altas montanhas d’elevados
cumes.
O sol do amor doira-las-á, e
assim,
Vendo-o tão alto, não terei
ciúmes.
Ciúmes! Elle é que ha-de telos,
quando,
Em claras noites de luar
silente,
Ouvir vibrar alguma voz,
cantando
Os versos que te fiz
devotamente.
Versos para te ungirem os ouvidos
E os lábios d’anémica e de
santa,
Tão pobres, tão ingénuos, tão
sentidos,
Que o povo humilde os acolheu e
os canta.
Então, se te olhar bem, logo
adivinha…
Logo sombriamente se convence
De que a tua alma se fundiu na
minha
–E apenas o teu corpo lhe
pertence.
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Cristalino como sempre em todas as suas composições poéticas, Augusto Gil que nos deixou neste livro - LUAR DE JANEIRO - uma "mão cheia" de poemas líricos imorredoiros, nesta NOIVA quis o Poeta deixar nos seus versos alexandrinos a traição sofrida de quem, através e uma carta - real ou imaginária, nunca o saberemos - soube a notícia "Vai ser pedida. Casa qualquer dia" para o Poeta nos dizer que ante notícias assim, de pouco valem ciúmes, sobretudo, quando a troca de um amor verdadeiro se troca pela venda do corpo a um outro sem futuro, que não seja o do momento fortuito que se evola como o vento.
De um lirismo puro são os versos de Augusto Gil.
Comovente, até, na sua realidade vivencial que não têm tempo nem lugar, mas existe hoje, com sempre existiu pela volatidade dos sentimentos frívolos de ambos os sexos.
Ela fez um upgrade e ele ficou com dor de cotovelo. A vida é assim e cada um desforra-se como pode, porventura, escrevendo versos e cultivando ilusões. Passado um ano, já ela o esqueceu... No tempo do poeta ainda não se falava em hipergamia, mas já se sabia o que era.
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