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domingo, 8 de abril de 2018

"NOIVA" - Um poema de Augusto Gil


NOIVA
                       "Vai ser pedida. Casa qualquer dia"
                                (Trecho de uma carta)



Tive notícias hoje a teu respeito:
«Vai ser pedida. Casa qualquer dia».
E o coração tranquilo no meu peito
–Continuou a bater como batia…

Surpreso duma tal serenidade,
Todo eu, intimamente, me sondava:
Pois nem ciúme? Nem sequer saudade?!
–E nem ciúmes, nem saudade achava…

Saudades, não; que o teu amor antigo
Guardam-no as cinzas (neste coração)
Como em Pompeia aqueles grãos de trigo
Que após centenas d’anos deram pão…

Saudades! Mas de quê?! Pois não sei eu
A lei antiga como o proprio mundo
De que o prazer mal chega, já morreu,
E só a dor nas almas cava fundo?

Causei-te longas horas de amargura,
Não consegues voltar a ser feliz;
A chaga que te abri não terá cura,
E se curar - lá fica a cicatriz.

À luz dum juramento que traíste
Tu has de vêr-me toda a vida pois.
Ergueste-o a Deus num dia amargo e triste
E Deus casou-nos esse dia, aos dois…

Ciúmes também não, por te venderes.
Desgraçadinha! Antes te houvesses dado;
Não descerias tanto entre as mulheres,
Seria mais humano o teu peccado.

Porém, embora a tua falta aponte,
P’ra mim és a que foste (ou que eu supus);
O sol desapparece no horisonte
–E a gente vê-o ainda a dar-nos luz…

Pode a desgraça erguer em frente a mim
Altas montanhas d’elevados cumes.
O sol do amor doira-las-á, e assim,
Vendo-o tão alto, não terei ciúmes.

Ciúmes! Elle é que ha-de telos, quando,
Em claras noites de luar silente,
Ouvir vibrar alguma voz, cantando
Os versos que te fiz devotamente.

Versos para te ungirem os ouvidos
E os lábios d’anémica e de santa,
Tão pobres, tão ingénuos, tão sentidos,
Que o povo humilde os acolheu e os canta.

Então, se te olhar bem, logo adivinha…
Logo sombriamente se convence
De que a tua alma se fundiu na minha
–E apenas o teu corpo lhe pertence.

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Cristalino como sempre em todas as suas composições poéticas, Augusto Gil que nos deixou neste livro - LUAR DE JANEIRO - uma "mão cheia" de poemas líricos  imorredoiros, nesta NOIVA quis o Poeta deixar nos seus versos alexandrinos a traição sofrida de quem, através e uma carta - real ou imaginária, nunca o saberemos - soube a notícia "Vai ser pedida. Casa qualquer dia"  para o Poeta nos dizer que ante notícias assim, de pouco valem ciúmes, sobretudo, quando a troca de um amor verdadeiro se troca pela venda do corpo a um outro sem futuro, que não seja o do momento fortuito que se evola como o vento.

De um lirismo puro são os versos de Augusto Gil.

Comovente, até, na sua realidade vivencial que não têm tempo nem lugar, mas existe hoje, com sempre existiu pela volatidade dos sentimentos frívolos de ambos os sexos.

1 comentário:

  1. Ela fez um upgrade e ele ficou com dor de cotovelo. A vida é assim e cada um desforra-se como pode, porventura, escrevendo versos e cultivando ilusões. Passado um ano, já ela o esqueceu... No tempo do poeta ainda não se falava em hipergamia, mas já se sabia o que era.

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