Pesquisar neste blogue

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

"Uma Consulta" . Um poema de Júlio Dinis


UMA CONSULTA

— Dá licença? — Entre quem é.
— Muitos bons dias. — Olé,
Por aqui, minha senhora?
Desculpe vossa excelência
Se a não conhecia agora.
— Sem mais... À sua ciência
Recorrer venho.—Deveras?
(Senhor me dê paciência!
Nunca tu cá me vieras).
Então que temos ? — Padeço.
— Sim? porém de que doença?
— Essa é boa! acaso pensa
Que eu porventura a conheço?
— Ah! não conhece ? — Quem dera!
Então não o consultava.
— (E eu que muito estimava).
Mas diga, então? — Eu lhe conto...
Oiça bem. Não perca um ponto.
— Nem um ponto hei-de perder.
— Ai, doutor, doutor, meu peito...
— É do peito que padece?
Quem havia de o dizer!
— E Jesus, doutor, parece
Que me quer interromper?!
Não era a isso sujeito.
— Nem o tornarei a ser...
Vamos lá. —Ora eu começo...
Atenção é o que lhe peço; 
Diga-me: que lhe pareço ?
Não me acha muito abatida?
— Assim, assim; mas às vezes
A vista pode enganar.
— Não, não. Pode acreditar
Que há já um bom par de meses
É um tormento esta vida.
— Então que é o que sente ?
— O que sinto? Ora eu lhe digo:
O doutor é meu amigo?
— Oh ! senhora... — E é prudente ?
Oiça, pois: Eu dantes era
Fera e rija, que era um gosto!
Ou em Dezembro ou Agosto
Correr o mundo pudera,
Sem no fim me achar cansada.
— E hoje? — Não lhe digo nada,
Nem comigo posso já.
— Mau é! — Quer saber, doutor ?
Só para vir até cá,
Que tormentos não passei!
— Diga-me, se faz favor.
Que idade tem? — Eu nem sei...
Eu sou mais nova três anos
Que o reitor da freguesia.
— (É grande consolação!)
— Tenho ainda outros dois manos
Que mais velhos do que eu são,
Porém, como eu lhe dizia,
Doutor...—Que mais sente então?
— A vista sinto estragada,
Até já me custa a ler,
De mais a mais sou nervosa.
Isso não lhe digo nada!
Olhe, estou sempre a tremer.
— Faço ideia. — Andava ansiosa
Por consultar o doutor;
Eu tenho em si muita fé.
— Lisonjeia-me. — Outra queixa...
Que eu sofro também... Qual é?
— É dum forte mal de dentes.
Todos me caem. — Bem, bem.
— E os que restam, mal assentes,
Qualquer dia vão também.
— É provável. — Ai, doutor!
Que cruel enfermidade !
Não acha? — Acho e o pior...
— Há-de curar-me, não há-de?
— E então não sente mais nada ?
— Nada... ai, sim, tem-me parecido,
Porém, talvez me iludisse...
•— Diga. — A semana passada,
Como ao espelho me visse...
Pareceu-me ter percebido...
— O quê ? — Que a pele não era
Como dantes, tão macia.
—• E então ? — Quem visse dissera
Que eram rugas. — (Eu dizia)
E é isso o que padece?
— Ainda pouco lhe parece,
Doutor? — Por certo que não.
— Então que doença tenho?
— Em sabê-lo muito empenho
Sempre tem ? — Eu ? Pois então ?
Para isso o procurei.
— Bem, então sempre lho digo
Mas julgo não ficarei
Por isto, seu inimigo.
— O meu doutor! — O seu mal
É, senhora, de algum perigo.
— Ai Jesus! — E muita gente
Dele morre. —Oh santo Deus!
Por quem é não diga tal!
E... morre-se de repente?
— Conforme. — Pecados meus?
E então é isso o que pensa!
Porém ainda me não disse
O nome dessa doença
E eu sempre o quero saber...
— O nome?—Sim.—É. . velhice!
— E o remédio? — Morrer.

Janeiro de 1860,
in. Poesias
........................................................................................

De formação académica, Júlio Dinis foi médico.

De formação literária viveu entre o romantismo surgido em Portugal por Almeida Garrett em 1825 e o realismo surgido no século XIX - no tempo curto da sua vida - tendo dado às suas obras em prosa e em verso, estas duas tendências estéticas, como acontece no realismo desta invulgar CONSULTA que só existiu na sua mente, porque a fina sensibilidade da sua alma jamais consentiria o desfecho radical como ele o apresenta à sua inventada paciente.

Mas vale a pena ler sobre a riqueza do diálogo em que o médico nunca deixou de o ser - mesmo quando diz, vendo a paciente: Nunca tu cá me vierase, do mesmo modo, a paciente idosa e queixosa, sem se lembrar do peso dos anos, pelo que este poema realista na forma e no conteúdo é, possivelmente, único em toda a Poesia Portuguesa.

Sem comentários:

Enviar um comentário