Soares de Passos (António Augusto) foi distinguido por Alexandre Herculano que numa carta que lhe dirigiu se expressa deste modo: "Na minha opinião, V. Sª, está destinado a ser o primeiro poeta lírico português deste século. Há nos seus poemas lampejos de génio, que o simples talento não pode produzir".
Soares de Passos foi considerado um seguidor a linha do Ultra-Romantismo que tinha como fio de prumo literário, entre outros, o verso livre, a idealização do amor e da mulher, a saudade infantil e a consciência da sua própria solidão.
Tudo isto aconteceu com o poeta em cujas poesias há laivos da precaridade da sua abalada saúde a que a tuberculose não deu tréguas, tornando-se ele mesmo "prisioneiro" dentro de sua própria casa do Porto, onde nasceu e morreu, e na qual recebia o preito da amizade dos amigos - como Júlio Dinis - que lhe dedicou no seu livro de poesias o poema que aqui se publica em honra da amizade, esse sentimento nobre que não tem idade.
A MORTE DO POETA
(À memória de A. A. Soares de
Passos)
Calou-se a lira! E a criação nos
coros
De menos uma voz aos céus revoa!
Na imensa harpa, em que o
universo entoa
Seus cânticos, de menos uma
corda!
Que foi? que nota falta às
harmonias?
Que foi? que mão deixou quebrar
a lira?
O poeta morreu, o canto expira,
Cessam seus hinos do sepulcro à
borda!
Morreu o teu cantor, ó Firmamento!
Teu sacerdote ardente, ó poesia!
Ó Deus, ó Pátria, a última
agonia
Gelou a voz que hosanas vos
sagrara!
Crente inspirado, os brados do
entusiasmo
Não lhe esfriou dos homens a
indiferença,
E a venenosa taça da descrença
Dos generosos lábios arrojara!
O poeta morreu! E o Sol e os
astros
Que ele cantou, e a abóbada
celeste
De lutuosas trevas se não veste;
E tu, ó Pátria, que ele amava
tanto,
Tu dormes inda esse gelado sono
?!
Não te acorda o seu último
gemido?
Sente-lhe a morte, se não hás
sentido
De animação e glória o eterno
canto.
Mas não; os homens vêem pasmar o
féretro,
Vêem do sepulcro alevantar-se a
lousa,
E, olhando a nobre fronte que
repousa,
— Quem é ? perguntam com cruel
frieza.
— É um poeta, lhes respondem
poucos.
Um poeta! palavra
incompreensível!
Por ele a multidão passa
insensível,
E a campa desampara com
presteza.
E um poeta morreu! listas
palavras
Nada vos dizem, povos, que as
ouvistes?
Não as há mais solenes nem mais
tristes.
Oh! nelas reflecti um só
momento!
Não sabeis o que diz a morte do
homem
Que se encaminha à campa que lhe
ergueram
Seguido apenas dos que ainda
veneram
O culto da poesia e pensamento?
Não ouvis esse dobre, que o
lamenta?
É como a voz do século, que
brada:
— «Chorai, ó multidões, que na
cruzada
Da civilização vos alistastes,
Chorai, um dos soldados que hà
caído,
Deus lhe dera a bandeira que vos
guia,
O estandarte da idéia, a poesia;
Mas vós na heróica empresa o
abandonastes!
«Lamenta, ó liberdade, o teu
apóstolo!
Amor, o coração que te entendia!
Tu, Pátria, o filho que melhor
podia
Entre as nações da terra
engrandecer-te!
Religião, ai! chora o sacerdote,
Que, entoando no templo os
sacros hinos,
Chamara os povos aos altares
divinos
E cultos sem iguais pudera
erguer-te!»
E tu, 0 mundo, o vês quase
indiferente!
Curva a cabeça ante essa campa
aberta,
Ajoelha-te, e a fronte
descoberta,
Venera as cinzas que deixou na
Terra;
Os restos são da mais violenta
chama,
Que o fogo do Céu no mundo
ateia;
A chama ardente de inspirada
idéia,
Fogo que a mente do poeta
encerra.
Verte, oh! verte uma lágrima na
tumba;
Uma lágrima só. Outros desejam
Soberbos mausoléus onde se vejam
Fulgir os nomes seus em letras
d'ouro;
Ele não. Flores e lágrimas, eis
tudo!
Eis o diadema a que o poeta
aspira;
Porque lho negas? Que paixão te
inspirar
Delas fizeste, ó mundo, o teu
tesouro?
Ai, não; umas e outras as
desprezas:
As flores procuram as campinas,
Porque a turba, ao passar, calca
as boninas,
E o sopro das cidades as
murchava.
As lágrimas, as flores do
sentimento,
Não as diviso já nos olhos do
homem,
Ou das paixões as lavas as
consomem,
Ou morto é o sentimento que as
gerava.
Fazes bem em passar, mundo, se
ignoras
Desta cena a solene majestade,
Impassível ficar era impiedade.
Parte, vai; a indiferença era um
insulto.
Oh! mil vezes mais grato o
isolamento...
Mas não, o isolamento não
existe:
Junto da campa se reúne triste
Longo cortejo de lutuoso vulto.
Ei-los; do vasto templo se
avizinham,
Trazem no rosto a dor, que os
consome.
Esses veneram do poeta o nome,
Do féretro ao passar, curvam a
fronte,
Respeitai esse pranto, que é
sentido;
Longe, indiferentes, que o lugar
é santo!
Os que entenderam seu sublime
canto,
Saúdam-no ao sumir-se no
horizonte.
Silêncio! A Pátria do seu sono
acorda!
Sono talvez, que precursor da
morte,
Do filho só lamenta a triste
sorte,
3eme saudosa com magoado acento!
Ai, nos seus dias de
passada glória,
De mãe o desespero a voz lhe
erguera,
E, em seu clamor, às praias
estendera
Das nações mais longínquas o
alto alento.
Mas hoje, já de forças exaurida,
É fraca a sua voz ante essa
tumba;
Do peito vem, porém já não
retumba
Nos ecos das nações mais
poderosas.
Apenas sua irmã, a mais vizinha,
Que quase a mesma linguagem
fala,
Compassiva parece lamentá-la,
Ouvindo suas queixas dolorosas.
Poeta, dorme pois: a tua campa
Não ficará sem lágrimas nem
flores,
As liras soltam fúnebres
clamores
E os ventos reproduzem suas
queixas.
Dorme, dorme, poeta, que teu
sono
A turba inquietaria com seus
passos;
Mas qual o infante nos maternos
braços,
Dorme ao som dessas lânguidas
endeixas.
Dorme, dorme em sossego... mas,
silêncio!
Para que solto a voz? Cala-te ó
lira!
Se o gênio da poesia não te
inspira,
Para que o seu cultor lamentas
triste?
Diante da mudez deste sepulcro
Teus ais de dor, ó coração,
suspende;
Vê em silêncio o Sol, que ao
ocaso pende
Como em silêncio no zénite o
viste.
Março de 1860
Júlio Dinis in, Poesias
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