Há, a par das Palavras Divinas - que hão-de ficar para sempre, por terem sido inspiradas por Deus - palavras que se parecem com Aquelas, sendo, embora de homens, mas que, por ttasportarem o divino da criatura a que Deus chamou "seu semelhante" hão-de ficar na memória dos homens por largo tempo.
O pensamento de Victor Hugo que encheu o mundo de palavras assim, deu-nos a maravilha lapidar que acima se reproduz, algo que levou, o talento e a serenidade do olhar da grande poetisa que foi Fernanda de Castro a escrever este soneto.
Alma Serena
Alma serena, a consciência pura,
assim eu quero a vida
que me resta.
Saudade não é dor nem
amargura,
dilui-se ao longe a
derradeira festa.
Não me tentam as
rotas da aventura,
agora sei que a minha
estrada é esta:
difícil de subir,
áspera e dura,
mas branca a urze, de
oiro puro a giesta.
Assim meu canto fácil
de entender,
como chuva a cair,
planta a nascer,
como raiz na terra,
água corrente.
Tão fácil o difícil
verso obscuro!
Eu não canto, porém,
atrás dum muro,
eu canto ao sol e
para toda a gente.
Fernanda de Castro, in "Ronda das Horas Lentas"
Fernanda de Castro acaba o poema, sobre a vida que lhe resta, dizendo: Eu não canto, porém, atrás dum muro / eu canto para toda a gente - porque ela foi sempre e, também, nos tempos da sua velhice uma luz, tal como podemos depreender da prosa seguinte, de Júlio Dantas, que afirma convictamente: Nada menos exacto do que supor que o talento constitui privilégio da mocidade, porque há muita luz na ciência dos mais velhos.
Se a juventude tem chamas é nos velhos que existe a luz maior.
Aquela que não queima, mas ilumina.
Se a juventude tem chamas é nos velhos que existe a luz maior.
Aquela que não queima, mas ilumina.
Vejamos Júlio Dantas a espraiar no seu texto, a luz que consegue iluminar à rectaguarda o tempo que passou.
O Talento na Juventude e na Velhice
Nada menos exacto do que supor que o talento constitui
privilégio da mocidade. Não. Nem da mocidade, nem da velhice. Não se é
talentoso por se ser moço, nem genial por se ser velho. A certidão de idade não
confere superioridade de espírito a ninguém. Nunca compreendi a hostilidade
tradicional entre velhos e moços (que aliás enche a história das literaturas);
e não percebo a razão por que os homens se lançam tantas vezes reciprocamente
em rosto, como um agravo, a sua velhice ou a sua juventude.
Ser idoso não quer
dizer que se seja necessariamente intolerante e retrógrado; e engana-se quem
supuser que a mocidade, por si só, constitui garantia de progresso ou de
renovação mental. As grandes descobertas que ilustram a história da ciência e
contribuíram para o progresso humano são, em geral, obra dos velhos sábios; e a
mocidade literária, negando embora sistematicamente o passado, é nele que se
inspira, até que o escritor adquire (quando adquire) personalidade própria.
(...) A mocidade, em geral, não cria; utiliza,
transformando-o, o legado que recebeu. Juventude e velhice não se opõem;
completam-se na harmonia universal dos seres e das coisas. A vida não é só o
entusiasmo dos moços; nem só a reflexão dos velhos; não está apenas na audácia
de uns, nem apenas na experiência dos outros; realiza-se pela magnífica
integração das virtudes contrárias, sem a qual não seria possível, em todo o
seu esplendor, a marcha da humanidade. Que se ganha em cavar um abismo entre
mocidade e velhice, se uma é, fatalmente, o prolongamento da outra; se o que
passa de mão em mão é, afinal, o mesmo facho aceso, como na corrida ritual da
Grécia antiga; e se, bem vistas as coisas, não está de nenhum modo provado que
os novos sejam intelectualmente os mais novos, e os velhos os mais velhos?
Júlio Dantas, in "Páginas de Memórias"
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