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domingo, 3 de novembro de 2013

Armando Côrtes Rodrigues (1891-1971)



Foto gentilmente cedida e autorizada a sua publicação
pelo Ex.mo Senhor João Rebelo,
neto de dois grandes amigos do Poeta, a quem este ilustre açoriano
a ofereceu e dedicou no ano de 1924.



Armando César Côrtes Rodrigues nasceu em Vila Franca do Campo (Açores) em 1891 e faleceu em 1971, tendo ficado órfão, pela morte da mãe, desde o seu nascimento.
Frequentou os estudos liceais em Ponta Delgada, tendo-se dirigido a Lisboa onde se licenciou em Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa, entre 1910-1915, período da vida em que contactou com Fernando Pessoa, tendo com ele feito parte do movimento intelectual da Revista "Orpheu", onde publicou alguns trabalhos sob o pseudónimo Violante de Cysneiros (1)

Regressado aos Açores em 1917, foi Professor dos liceus de Ponta Delgada e de Angra do Heroísmo, tendo mantido com Pessoa abundante troca de correspondência, enquanto o seu labor literário se debruça sobre estudos de etnografia açoriana - oral e popular - campo em que viria a gozar de uma grande aura, cultivando ao mesmo tempo o seu estro poético, mergulhando-o em poesia de um acentuado pendor religioso.

É o celebrado autor teatral da famosa peça "Quando o Mar Galgou a Terra", a qual, com as adaptações que lhe foram feitas, foi tema de um filme português que deu algum brado no acanhado meio fílmico português.
Com toda a justiça em 1953 ganhou o Prémio Antero do Quental através do seu livro "Horto Fechado e Outros Poemas", trabalho literário que foi buscar às suas próprias raízes o devido merecimento.
Homem de grande cultura, o Instituto Cultural de Ponta Delgada, honra-se de o ter e honrar como um dos seus sócios fundadores, afirmando-se, com todo o mérito um dos intelectuais de maior nomeada do séc. XX, não só nos Açores, como no Continente.

A toponímia de Ponta Delgada não o esqueceu, existindo em sua memória a "Morada da Escrita/Casa Armando Côrtes Rodrigues" um espaço de cultura inaugurado na sua derradeira morada em terra açoriana, em Janeiro de 2007, tendo como finalidade proporcionar um Centro de Convívio com pessoas da cultura, mas aberta ao público em geral, recebendo actividades, como: conferências, exposições, ateliers direccionados à incentivação da escrita e interpretações de obras literárias e sessões de cinema.
Da sua vasta obra, contam-se as seguintes:

Pela sua ligação profunda a Fernando Pessoa, transcreve-se "ipsis-verbis" uma carta recebida deste seu ilustre confrade do "Orpheu" que bem merece a leitura pela demonstração da grande amizade que uniu os dois poetas.

[Carta a Armando Côrtes-Rodrigues - 19 Jan. 1915]

Lisboa, 19 de Janeiro de 1915.
               Meu querido Amigo:
Há tempos que lhe ando prometendo uma extensa carta. Não sei mesmo se, especificando, lhe não falei numa carta de género psicológico, a meu próprio respeito. Em todo o caso, é disso que se trata.

Eu ando há muito - desde que lhe prometi esta carta — com vontade de lhe falar intimamente e fraternalmente do meu «caso», da natureza da crise psíquica que há tempos venho atravessando. Apesar da minha reserva, eu sinto a necessidade de falar nisto a alguém, e não pode ser a outro senão a você — isto porque só você, de entre todos quantos eu conheço, possui de mim uma noção precisamente no nível da minha realidade espiritual. Dá-se esta sua capacidade para me compreender porque você é, como eu, fundamentalmente um espírito religioso; e, dos que de perto literariamente me cercam, você sabe bem que (por superiores que sejam como artistas) como almas, propriamente, não contam, não tendo nenhum deles a consciência (que em mim é quotidiana) da terrível importância, da Vida, essa consciência que nos impossibilita de fazer arte meramente pela arte, e sem a consciência de um dever a cumprir para com nós-próprios e para com a humanidade.

Nesta explicação aparentemente preliminar vai já exposta uma grande parte do problema. Não sei como lho hei-de expor ordenadamente; de modo perfeitamente lúcido. Mas, como isto é uma carta, eu irei expondo conforme possa; e você ordenará, em seu espírito, depois, os dispersos e alterados elementos.
A minha crise é do género das grandes crises psíquicas, que são sempre crises de incompatibilidade, quando não com os outros, por certo com nós-próprios. A minha, agora, não é de incompatibilidade comigo próprio; a minha, gradualmente adquirida, auto disciplina, tem conseguido unificar dentro de mim quantos divergentes elementos do meu carácter eram susceptíveis de harmonização. Ainda tenho muito a empreender dentro do meu espírito; disto ainda muito de uma unificação como eu a quero. Mas, como disse, não é dessa banda que sopra o vento do meu desconsolo actual.

A crise de incompatibilidade com os outros — não, entenda-se desde já, uma incompatibilidade violenta, como a que resultasse de divergências declaradas, nítidas, de ambas as partes. Trata-se de outra coisa. A incompatibilidade é sentida por mim, dentro de mim, e é comigo que está o peso todo da minha divergência de aqueles que me cercam. O facto de eu estar agora vivendo só, por não ter aqui família próxima (minha tia, em cuja casa eu estava, está na Suíça, onde foi ficar com a filha, que casou há pouco com um rapaz estudante, pensionista do Estado) vem agravar este estado de espírito, por me deixar a nu com a minha alma, sem afeições e interesses familiares próximos a desviar de mim a minha atenção.
Temos pois que vivo há meses numa continua sensação de incompatibilidade profunda com as criaturas que me cercam - mesmo com as próximas, amigos, literários é claro, porque os outros não são indivíduos com quem eu tenha que poder ter intimidade espiritual e por isso — como, em matéria de relações sociais, me dou bem com toda a gente, dou-me bem com eles.

Em ninguém que me cerca eu encontro uma atitude para com a vida que bata certo com a minha íntima sensibilidade, com as minhas aspirações e ambições, com tudo quanto constitui o fundamental e o essencial do meu íntimo ser espiritual. Encontro, sim, quem esteja de acordo com actividades literárias que são apenas dos arredores da minha sinceridade. E isso não me basta. De modo que, à minha sensibilidade cada vez mais profunda, e à minha consciência cada vez maior da terrível e religiosa missão que todo o homem de génio recebe de Deus com o seu génio, tudo quanto é futilidade literária, mera-arte, vai gradualmente soando cada vez mais a oco e a repugnante. Pouco a pouco, mas seguramente, no divino cumprimento íntimo de uma evolução cujos fins me são ocultos, tenho vindo erguendo os meus propósitos e as minhas ambições cada vez mais à altura daquelas qualidades que recebi. Ter uma acção sobre a humanidade, contribuir com todo o poder do meu esforço para a civilização vêm-se-me tornando os graves e pesados fins da minha vida. 
E, assim, fazer arte parece-me cada vez mais importante coisa, mais terrível missão — dever a cumprir arduamente, monasticamente, sem desviar os olhos do fim criador-de-civilização de toda a obra artística. E por isso o meu próprio conceito puramente estético da arte subiu e dificultou-se; exijo agora de mim muita mais perfeição e elaboração cuidada. Fazer arte rapidamente, ainda que bem, parece-me pouco. Devo à missão que me sinto uma perfeição absoluta no realizado, uma seriedade integral no escrito.

Passou de mim a ambição grosseira de brilhar por brilhar, e essa outra, grosseiríssima, e de um plebeísmo artístico insuportável, de querer épater. Não me agarro já à ideia do lançamento do Interseccionismo com ardor ou entusiasmo algum. É um ponto que neste momento analiso e reanaliso a sós comigo. Mas, se decidir lançar essa quase-blague, será já, não a quase-blague que seria, mas outra coisa. Não publicarei o Manifesto «escandaloso». O outro — aquele dos gráficos — talvez. A blague só um momento, passageiramente, a um mórbido período transitório, de grosseria (felizmente incaracterístico), me pôde agradar ou atrair. Será talvez útil — penso — lançar essa corrente como corrente, mas não com fins meramente artísticos, mas, pensando esse acto a fundo, como uma série de ideias que urge atirar para a publicidade para que possam agir sobre o psiquismo nacional, que precisa trabalhado e percorrido em todas as direcções por novas correntes de ideias e emoções que nos arranquem à nossa estagnação. Porque a ideia patriótica, sempre mais ou menos presente nos meus propósitos, avulta agora em mim; e não penso em fazer arte que não medite fazê-lo para erguer alto o nome português através do que eu consiga realizar. É uma consequência de encarar a sério a arte e a vida. Outra atitude não pode ter para com a sua própria noção-do-dever quem olha religiosamente para o espectáculo triste e misterioso do Mundo.
Tenho-lhe explicado tudo isto muito mal. Quase que me tenta a ideia de rasgar esta carta onde, até, pouca justiça fiz a mim próprio. Mas você deve compreender o que eu sinto, e, creio, regozijar comigo, através da sua amizade, por esta minha evolução ascendente dentro de mim.

Regresso a mim. Alguns anos andei viajando a colher maneiras-de-sentir. Agora, tendo visto tudo e sentido tudo, tenho o dever de me fechar em casa no meu espírito e trabalhar, quanto possa e em tudo quanto possa, para o progresso da civilização e o alargamento da consciência da humanidade. Oxalá me [não] desvie disto o meu perigoso feitio demasiado multilateral, adaptável a tudo, sempre alheio a si próprio e sem nexo dentro de si.
Mantenho, é claro, o meu propósito de lançar pseudonicamente a obra Caeiro-Reis-Campos. Isso é toda uma literatura que eu criei e vivi, que é sincera, porque é sentida, e que constitui uma corrente com influência possível, benéfica incontestavelmente, nas almas dos outros. O que eu chamo literatura insincera não é aquela análoga à do Alberto Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos (o seu homem, este último, o da poesia sobre a tarde e a noite). Isso é sentido na pessoa de outro; é escrito dramaticamente, mas é sincero (no meu grave sentido da palavra) como é sincero o que diz o Rei Lear, que não é Shakespeare, mas uma criação dele. 

Chamo insinceras às coisas feitas para fazer pasmar, e às coisas, também — repare nisto, que é importante — que não contêm uma fundamental ideia metafísica, isto é, por onde não passa, ainda que como um vento uma noção da gravidade e do mistério da Vida. Por isso é sério tudo o que escrevi sob os nomes de Caeiro, Reis, Álvaro de Campos. Em qualquer destes pus um profundo conceito da vida, diverso em todos três, mas em todos gravemente atento à importância misteriosa de existir. E por isso não são sérios os Paúis, nem seria o Manifesto interseccionista de que uma vez lhe li trechos desconexos. Em qualquer destas composições a minha atitude para com o público é a de um palhaço. Hoje sinto-me afastado de achar graça a esse género de atitude.

Que pouco lúcido e explícito tudo isto! Mas eu tenho que lhe escrever tudo rapidamente; é hoje o dia 19 e eu não quero deixar de conversar com o seu espírito sobre estas coisas. Como já disse, você é o único dos meus amigos que tem, a par daquela apreciação das minhas qualidades que lhe permitirá não julgar esta carta um documento de megalómano, a profunda religiosidade, e a convicção do doloroso enigma da Vida, para simpatizar comigo em tudo isto.
Escuso agora de lhe explicar o quanto esta atitude — que eu, aliás, não revelo, por várias razões, desde a de ser uma coisa íntima até à de ser incompreensível às sensibilidades dos que me cercam — me incompatibiliza surdamente com os que estão em meu redor. Não é uma incompatibilidade violenta, disse; mas é uma impaciência para com todos quantos fazem arte para vários fins inferiores, como quem brinca, ou como quem se diverte, ou como quem arranja uma sala com gosto — género de arte este que dá bem o que eu quero exprimir, porque não tem Além nem outro propósito que o, por assim dizer, decorativamente artístico. E daí a minha «crise» toda. Não é crise para eu me lamentar. É a de se encontrar só quem se adiantou de mais aos companheiros de viagem — desta viagem que os outros fazem para se distrair e acho tão grave, tão cheia de termos de pensar no seu fim, de reflectir no aqui diremos ao Desconhecido para cuja casa a nossa inconsciência guia os nossos passos... Viagem essa, meu querido Amigo, que é entre almas e estrelas, pela Floresta dos Pavores... e Deus, fim da estrada infinita, à espera no silêncio da Sua grandeza...

Bem ou mal — mal, por certo — expus-lhe tudo. Sinto-me contente por lhe ter falado assim, e porque sei que o seu espírito acolhe com simpatia e amizade estas minhas tristezas de altura. Tudo isto, escuso dizer-lhe, é segredo... De resto, a quem o poderia você contar?...
Termino, a tempo felizmente. Mande-me quando puder, cuidadosamente copiados dos originais, os inéditos de Antero de que me fala. Pode ser que, tendo-os aqui, seja conveniente publicá-los nalguma parte. Haverá autorização para isso? É bom saber-se.
Mando-lhe alguns versos meus... Leia-os e guarde-os para si... A seu Pai, se quiser, pode lê-los, mas não espalhe porque são inéditos. Amo especialmente a última poesia, a da Ceifeira onde consegui dar a nota paúlica em linguagem simples. Amo-me por ter escrito
               «Ah, poder ser tu, sendo eu!
                Ter a tua alegre inconsciência
                E a consciência disso!...
e enfim, essa poesia toda.
Tenho escrito mais, mas mando o que está completo e é mais fácil copiar. É pena que vá tudo em letra de máquina, que torna a poesia pouco poética, mas assim é mais rápido e nítido.
Escreva-me sempre, meu caro Côrtes-Rodrigues. Dê cumprimentos meus a seu Pai e receba um grande e fraterno abraço do seu
               Fernando Pessoa


in, http://arquivopessoa.net/textos/3510

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Obras poéticas e contos


(1922), Ode a Minerva. Angra do Heroísmo.
(1922), Conto do Natal para a Fernanda in Os Açores, Revista Ilustrada, Ponta Delgada, Barbosa e Irmão.
(1924), Em Louvor da Humildade. Poemas da Terra e dos Pobres. Ponta Delgada, Artes Gráficas.
(1934), Cântico das Fontes. Ponta Delgada, Gráfica Regional.
(1942), Cantares da Noite Seguidos dos Poemas de Orpheu. Ponta Delgada, Gráfica Regional.
(1948), Quatro Poemas Líricos. Porto.
(1953), Horto fechado e Outros Poemas. Porto, Imprensa Portuguesa.
(1956), Antologia de Poemas de Armando Côrtes-Rodrigues (org. Eduíno de Jesus). Coimbra, Arquipélago.
(1957), Em Louvor da Redondilha. Atlântida, 1, n.º 6: 341-342.
(1957), Auto do Espírito Santo. Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada.
(1965), Auto do Natal. Atlântida, 9, n.º 6: 195-211.

Teatro e cinema

(1926), Auto do Natal. Lisboa, s.n..
(1932), O Milhafre. Angra do Heroísmo, Liv. Editora Andrade.
(1940), Quando o Mar Galgou a Terra. Ponta Delgada, Papelaria Âmbar.
(1942), Cantares da Noite Seguidos dos Poemas de Orpheu. Ponta Delgada, Gráfica Regional (poesia, foi argumento de filme em 1954, realizado pela produtora Filmes Albuquerque, Lisboa).

Crónicas

(1961-1966), Voz do Longe. Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada.

Etnografia

(1937), Poesia Popular Açoriana. Angra do Heroísmo, Tipografia Editora Andrade.
(1942), Cantar às Almas, Açoriana, Angra do Heroísmo, 3, n.º 1: 17-35.
(1982), Cancioneiro Geral dos Açores. Angra do Heroísmo, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, 3 volumes.
(1982), Adagiário Popular Açoriano. Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 2 volumes

in, Wikipédia

Vamos da sua obra poética exaltar as seguintes composições através das quais se pode aquilatar da alma grande que habitou e impulsionou o homem no seu profícuo labor intelectual, que de tão grande que foi, deixou sinais perduráveis no tempo.


A VOZ DO SILÊNCIO


Silenciosa,

A noite calma,
Ó quantas coisas
Me diz à alma!

Cessai, ó fontes
A ladainha;
Deixai a noite
Falar sozinha.

Quanto mistério,
Quanto segredo,
No ar perpassa
Como que a medo...

Ó voz da noite,
Que comoção!
Como o teu, bate
Meu coração.

E a treva funda,
A treva densa
Tem um martírio
De mágoa imensa.

Treva da vida,
Quem não sofreu?
Ó céu azul
Que escureceu...

Por isso ecoa
Dentro da minh'alma
A voz silente
Da noite calma.

in, "Em Louvor da Humanidade"


Há um conceito popular muito difundido nas regiões montanhosas,  ou isoladas, que diz: ao olhar a imensidão daquilo que nos dodeia ouve-se o silêncio, como se o observador situasse o seu pensamento na abertura do sétimo selo de que nos fala o Apocalipse (8,1), quando houve pelo espaço de meia hora silêncio no Céu, significando isso, que se esperava as grandes coisas que iriam acontecer e, por isso, tal como o observador "escuta o silêncio" na expectativa de acordar desse êxtase para a realidade, o leitor do Apocalipse ao ouvir o silêncio que se fez no Céu, fica à espera do que Deus desvende o mistério.
O Poeta Armando Côrtes Rodrigues, quando nos fala da noite calma e do que esta lhe diz, ao pedir que deixem a noite falar sozinha, não esconde o que pretende saber: a raiz do mistério que perpassa no ar, como se fosse um segredo escondido na treva funda, deixando ficar patente o sofrimento que a treva da vida impõe, ao ponto de levar a fechar-se o céu azul / que escureceu... havendo nestes dois versos uma alusão ao céu que se fechou na hora em Cristo agonizava na Cruz.
É por isso que neste poema simples mas profundo, o Poeta pede que deixem a noite falar sozinha. Precisava entender a voz silente - a forma poética de chamar o silêncio - em que na interrogação de si mesmo, feita já noite calma, se revelasse, como o fizeram as trombetas do Apocalipse o anúncio de uma nova e definitiva jornada da sua própria vida de um crente convicto no Crucificado.


(POEMA 8º DO LIVRO)


Canto.
E neste silêncio adormecido
A minha voz ganhou outro encanto,
Parece uma outra voz ao meu ouvido.

Canto.
O que disse, o que digo, o que direi?...
A minha voz vai ter à voz do mar. No entanto,
Qual é depois a minha voz, nem eu sei.

Para quê?
Deixa o meu canto andar errando à revelia...
Ninguém por ele dê,
Nem quando acaba ou quando principia.

Orquestração da vida!
Quanto ardor nela ponho!
Em que alma há-de ecoar, enternecida,
A canção do meu sonho?...

in, "Cantares da Noite"



OUTRO (Nº 7)


Nada em mim é necessário,
Nem mesmo o que foi sonhado:
Ó contas do meu rosário
Dum sonho não acabado!

Tudo tão feito de Mim,
Só o longe do passado
É como um sonho sem fim
Que outro tivesse sonhado.

Cruzo os meus braços. Não falo.
Ouço uma voz dolorida
Dentro de mim, evocá-lo

Marinheiro! Ilha perdida!
E o meu sentido, a sonhá-lo
É a verdade da vida.

in, "Cantares da Noite"


(SONETILHO 3º DE VIOLANTE DE CISNEIROS) (1)

Quando a paisagem recolhe
Seus olhos, na tarde calma,
É como alguém que se olhe
Com olhos de alma p'ra alma.

Se a paisagem esmorece,
Fechando os olhos doridos,
É como alguém que perdesse
A noção dos seus sentidos.

Não vê... não ouve... não fala...
Paisagem de si ausente,
Fico-me ausente de olhá-la.

Caminho. Noite cerrada!
Sou a paisagem de ausente
Toda em mim transfigurada.

in, "Cantares da Noite"

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(1) - Pseudónimo do autor nos tempos da Revista "Orpheu"

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