Pesquisar neste blogue

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Luta (Um soneto de Antero de Quental)



Capa da Revista "Occidente" nº 460 de 1 de Outubro de 1891


Luta

 Fluxo e refluxo eterno...
 João de Deus.

 Dorme a noite encostada nas colinas.
 Como um sonho de paz e esquecimento
 Desponta a lua. Adormeceu o vento,
 Adormeceram vales e campinas...

 Mas a mim, cheia de atracções divinas,
 Dá-me a noite rebate ao pensamento.
 Sinto em volta de mim, tropel nevoento,
 Os Destinos e as Almas peregrinas!

 Insondável problema!... Apavorado
 Recua o pensamento!... E já prostrado
 E estúpido á força de fadiga,

 Fito inconsciente as sombras visionárias,
 Enquanto pelas praias solitárias
 Ecoa, ó mar, a tua voz antiga.

Antero de Quental, in "Sonetos"



Antero de Quental dá a este soneto que ele dedicou ao seu grande amigo João de Deus o nome "Fluxo e refluxo eterno...", que é, simplesmente, mas com toda a verdade, algo que animou a sua vida, que foi efectivamente, um fluxo de marés vivas por onde espraiou o seu brilhante pensamento e de refluxos por onde o fez recuar até ao dia fatídico em que no Campo de S. Francisco, em Ponta Delgada, num banco que ainda hoje lá está - ou cópia dele - puxou de um revólver e deu conta a Deus da sua vida.

Atentando na primeira estrofe o que sentimos, lendo-a coma emoção que ela merece é o seu exame de consciência - dos muitos que a sua natureza em busca do Nirvana - fez ao longo da sua vida, pondo a noite a dormir encostada nas colinas, enquanto sentia rebates de pensamento e à sua volta num tropel, cavalgavam Destinos e as Almas Peregrinas, onde, certamente, a sua ocupava um lugar destacado, por viver no estudo do Insondável problema da existência, onde, de acordo com a sua vida feira de avanços entrosados no problema social dos mais abandonados pela sociedade cruel do seu tempo, ele, declara, que também sofreu recuos de pensamento, a que não falta alguma prostação e, até, de fadigas.

Por fim, é no "Fluxo e refluxo eterno...", das ondas do mar que beijam as praias solitárias, que sente existir a sua própria praia, onde chegavam em vagalhões alterosos das ondas que de que ele mesmo fora causador, ecoando nela todas as vozes - de familiares e de amigos - que naquela noite cheia de atracções divinas - como ele diz o mantinham acordado num silêncio tal que o próprio vento havia adormecido e, do mesmo modo, vales e campinas...

Antero de Quental foi um génio a quem coube adivinhar um tempo que não chegou a viver e pelo qual lutou com os fluxos e refluxos da sua inquietude.
Pena foi, que naquele banco do Campo de S. Francisco, os médicos que o socorreram não lhe tivessem podido recuperar a vida que ele trucidou. 
Por detrás do banco - já lá estava, como hoje está - um dístico colado à parede com o nome ESPERANÇA bem visível - invocando o nome do Mosteiro de Nossa Senhora da Esperança, onde se situa o Santuário de Senhor Santo Cristo dos Milagres - como se o Poeta nos quisesse dizer que ele morreu na esperança do encontro com uma noite singular, cheia de atracções divinas, por que foi sempre no divino que nunca o abandonou, que Deus, certamente acolheu, por fim a sua alma que até ao fim lutou com os fluxos e refluxos da sua vida.

Por isso ele deu ao soneto o título LUTA, a que não é estranha, certamente, a sua própria luta do reencontro com o Deus da sua infância e que - só ele o sabe - o terá levado a procurar aquele banco de jardim que ficava contíguo às paredes do Mosteiro de Nossa Senhora da Esperança para beber ali, o cálice amargo de uma vida que ele ceifou a si mesmo, na esperança de Deus lhe perdoar o acto onde travou a sua última luta.
É uma conjectura que parece fazer sentido, conhecendo o homem e o seu percurso de vida.


Sem comentários:

Enviar um comentário