Gravura publicada pela Revista "Occidente" de 15 de Julho de 1878
Que dizer de João de Deus que não haja já sido dito?
Embora correndo esse risco, vou servir-me do livro "In Illo Tempore" de Trindade Coelho para respigar dele um dos tema desse formoso feixe de memórias da sua vida académica, em Coimbra, ""Resurrexit non est hic" e que o autor dedica ao seu colega de estudo coimbrão, João de Deus
“In illo tempore – no tempo em que João de Deus andava em
Coimbra, havia na Lusa Atenas, que é terra de mulheres bonitas, duas senhoras
muito formosas, que eram irmãs, – uma chamada Raquel e a outra Cândida. A
Raquel, principalmente, diz que era uma divindade; e a mocidade da Academia,
sobretudo os poetas, bebiam os ares por ela! Não era branca nem morena; tinha
uma cor de bronze, de uma suavidade encantadora, nariz grego, e então uns olhos
extraordinários, aveludados, muito brilhantes e pestanudos, que eram a perdição
da rapaziada! Os pretendentes eram assim – aos cardumes… E a cabeça de rapaz
sobre a qual esses olhos admiráveis pousassem por um instante, mesmo
casualmente, era cabeça perdida; porque entrava logo de andar à roda, como se
fosse uma ventoinha, e o menos que lhe acontecia era rebentar numa catadupa de
versos – que nem sempre, diga-se a verdade, eram condignos da inspiradora…
Ora o João de Deus pertencia à ala dos namorados dessa
divindade, se bem que nunca lhe falasse; e tanto, que a majestosa Raquel ficou
sendo para ele uma espécie de musa, como para o Camões a Catarina, para o Dante
a Beatriz , a Laura para o Petrarca, para Miguel Ângelo Vitória Colonna,
etc.,etc. Fez-lhe muitos versos, e aquela poesia "A Vida", que a não há mais
linda em todo o mundo; e fez-lhe depois, quando ela morreu, aquela elegia que
tem o seu nome – "Raquel"–uma das melhores coisas que o génio humano tem produzido,
e que João de Deus, por sinal, improvisou numa tourada, alheio, absorto,
estranho ao mais formidável chinfrim que se tem desencadeado numa praça de
touros! Soubera a notícia da morte quando ia para lá; chegou e amodorrou-se a
um canto: e quando se deu fé que a praça de touros tinha desabado, revolvida,
de baixo para cima pelo furacão da rapaziada, foi dar com ele o João Vilhena, o
seu fiel Acates, no mesmo lugar onde o deixara, e que por milagre tinha
escapado! Pegou-lhe por um braço e levou-o dali, como se estivesse doido ou a
dormir… (…)
Esta Raquel foi uma paixão de João de Deus e, como assevera Trindade Coelho, foi por sua causa que o Poeta de S. Bartolomeu de Messines levou dez anos a concluir a sua formatura em Direito.
Manda, contudo, a verdade que se diga que em 1850 volta para Messines a fim de
ajudar a sua meia irmã Maria Justa que se encontrava doente e que ele muito
prezava perdendo assim um ano lectivo (no qual nem se matriculou), uma prova da rara sensibilidade que o levou assim até ao fim da vida.
A Raquel - segundo afirma Trindade Coelho - dedicou João de Deus o famoso poema "A Vida", que a não há mais linda em todo o mundo, como ele assevera:
Vejamos:
A vida
A José A. S. R. de Castro
Cosi trápassa, al trapassar d'un
giorno,
Dela vita mortale il fiore e 'l
verde,
Nè, perchè faccia indietro april
ritorno,
Si rinfiora ella mai, nè si
rinverde.
Tasso
Foi-se-me pouco a pouco
amortecendo
A luz que nesta vida me guiava,
Olhos fitos na qual até contava
Ir os degraus do túmulo
descendo.
Em se ela enuviando, em a não
vendo,
Já se me a luz de tudo anuviava
Despontava ela apenas,
despontava
Logo em minha alma a luz que ia
perdendo.
Alma gémea da minha, e ingénua e
pura
Como os anjos do céu (se o não
sonharam...)
Quis mostrar-me que o bem bem
pouco dura!
Não sei se me voou, se ma
levaram;
Nem saiba eu nunca a minha
desventura
Contar aos que inda em vida não
choraram...
Ah! quando no seu colo
reclinado,
Colo mais puro e cândido que
arminho,
Como abelha na flor do
rosmaninho
Osculava seu lábio perfumado;
Quando à luz dos seus olhos (que
era vê-los,
E enfeitiçar-se a alma em graça
tanta!)
Lia na sua boca a Bíblia santa
Escrita em letra cor dos seus
cabelos;
Quando a sua mãozinha pondo um
dedo
Em seus lábios de rosa pouco
aberta,
Como tímida pomba sempre alerta,
Me impunha ora silêncio, ora
segredo;
Quando, como a alvéola, delicada
E linda como a flor que haja
mais linda,
Passava como o cisne, ou como
ainda
Antes do sol raiar nuvem
doirada;
Quando em bálsamo de alma
piedosa
Ungia as mãos da súplice
indigência,
Como a nuvem nas mãos da
Providência
Uma lágrima estila em flor
sequiosa;
Quando a cruz do colar do seu
pescoço
Estendendo-me os braços, como
estende
O símbolo de amor que as almas
prende,
Me dizia... o que às mais dizer
não ouço;
Quando, se negra nuvem me
espalhava
Por sobre o coração algum
desgosto,
Conchegando-me ao seu cândido
rosto
No perfume de um riso a
dissipava;
Quando o oiro da trança aos
ventos dando
E a neve de seu colo e seu
vestido,
Pomba que do seu par se ia
perdido,
Já de longe lhe ouvia o peito
arfando;
Quando o anel da boca luzidia,
Vermelha como a rosa cheia de
água,
Em beijos à saudade abrindo a
mágoa,
Mil rosas pela face me esparzia;
Tinha o céu da minha alma as
sete cores,
Valia-me este mundo um paraíso,
Distilava-me a alma um doce
riso,
Debaixo de meus pés brotavam
flores!
Deus era inda meu pai, e em
quanto pude
Li o seu nome em tudo quanto
existe,
No campo em flor, na praia anda
e triste,
No céu, no mar, na terra e... na
virtude!
Virtude! Que é mais que um nome
Essa voz que em ar se esvai,
Se um riso que ao lábio assome
Numa lágrima nos cai!
Que és, virtude, se de luto
Nos vestes o coração?
És a blasfémia de Bruto:
Não és mais que um nome vão!
Abre a flor à luz, que a enleva,
Seu cálix cheio de amor,
E o sol nasce, passa e leva
Consigo perfume e flor!
Que é desses cabelos de oiro
Do mais subido quilate,
Desses lábios escarlate,
Meu tesoiro!
Que é desse hálito que ainda
O coração me perfuma!
Que é desse colo de espuma,
Pomba linda!
Que é duma flor da grinalda
Dos teus doirados cabelos!
Desses olhos, quero vê-los,
Esmeralda!
Que é dessa franja comprida
Daquele xaile mais leve
Do que a nuvem cor de neve,
Margarida!
Que é dessa alma que me deste,
Dum sorriso, um só que fosse,
Da tua boca tão doce,
Flor celeste!
Tua cabeça que é dela,
A tua cabeça de oiro,
Minha pomba! meu tesoiro!
Minha estrela!
De dia a estrela de alva
empalidece;
E a luz do dia eterno te há
ferido!
Em teu languido olhar adormecido
Nunca me um dia em vida
amanhecesse!
Foste a concha da praia! A flor
parece
Mais ditosa que tu! Quem te há
partido,
Meu cálix de cristal onde hei
bebido
Os néctares do céu... se um céu
houvesse!
Fonte pura das lágrimas que
choro,
Quem tão menina e moça desmanchado
Te há pelas nuvens os cabelos de
oiro!
Some-te, vela de baixel
quebrado!
Some-te, voa, apaga-te, meteoro!
É só mais neste mundo um
desgraçado!
E as desgraças podia prevê-las
Quem a terra sustenta no ar,
Quem sustenta no ar as estrelas,
Quem levanta às estrelas o mar.
Deus podia prever a desgraça,
Deus podia prever e não quis!
E não quis, não... se a nuvem
que passa
Também pôde chamar-se infeliz!
A vida é o dia de hoje,
A vida é ai que mal soa,
A vida é sombra que foge,
A vida é nuvem que voa:
A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvai:
A vida dura um momento,
Mais leve que o pensamento,
A vida leva-a o vento,
A vida é folha que cai!
A vida é flor na corrente,
A vida é sopro suave,
A vida é estrela cadente,
Voa mais leve que a ave:
Nuvem que o vento nos ares,
Onda que o vento nos mares,
Uma após outra lançou,
A vida - pena caída
Da asa de ave ferida -
De vale em vale impelida
A vida o vento a levou!
Como em sonhos o anjo que me
afaga
Leva na trança os lírios que lhe
pus,
E a luz quando se apaga
Leva aos olhos a luz!
Levou sim, como a folha que
desprende
De uma flor delicada o vento
sul,
E a estrela que se estende
Nessa abobada azul;
Como os ávidos olhos de um
amante
Levam consigo a luz de um terno
olhar,
E vento do levante
Leva a onda do mar!
Como o tenro filhinho quando
expira
Leva o beijo dos lábios
maternais,
E à alma que suspira
O vento leva os ais!
Ou coma leva ao colo a mãe seu
filho,
E as asas leva a pomba que voou,
E o sol leva o seu brilho...
O vento ma levou!
E Deus, tu és piedoso,
Senhor! és Deus e pai!
E ao filho desditoso
Não ouves pois um ai!
Estrelas deste aos ares,
Dás pérolas aos mares.
Ao campo dás a flor,
Frescura dás às fontes,
O lírio dás aos montes,
E roubas-ma, Senhor!
Ah! quando numa vista o mundo abranjo,
Estendo os braços e, palpando o
mundo,
O céu, a terra e o mar vejo a
meus pés,
Buscando em vão a imagem do meu
anjo,
Soletro à froixa luz de um
moribundo
Em tudo só: Talvez!...
Talvez! - é hoje a Bíblia, o
livro aberto
Que eu só ponho ante mim nas rochas
quando
Vou pelo mundo ver se a posso
ver;
E onde, como a palmeira do
deserto,
Apenas vejo aos pés inquieta
ondeando
A sombra do meu ser!
Meu ser... voou na asa da águia
negra
Que, levando-a, só não levou
consigo
Desta alma aquele amor!
E quando a luz do sol o mundo
alegra,
Crisálida nocturna a sós comigo
Abraço a minha dor!
Dor inútil! Se a flor que ao céu
envia
Seus bálsamos se esfolha, e tu
no espaço
Achas depois seus átomos subtis,
Inda hás-de ouvir a voz que
ouviste um dia...
Como a sua Leonor inda ouve o
Tasso...
Dante, a sua Beatriz!
- Nunca! responde a folha que o
outono,
Da haste que a sustinha a mão
abrindo,
Ao vento confiou;
- Nunca! responde a campa onde
do sono
E quem talvez sonhava um sonho
lindo,
Um dia despertou!
- Nunca! responde o ai que o
lábio vibra;
- Nunca! responde a rosa que na
face
Um dia emurcheceu:
E a onda que um momento se
equilibra
Em quanto diz às mais: Deixai
que eu passe!
E passou e... morreu!
in, "Campo de Flores"
in, "Campo de Flores"
Quando Raquel morreu - é, ainda, Trindade Coelho que o afirma, João de Desu fez soltar a lira e escreveu a seguinte elegia a que deu o nome do seu acrisolado amor de Coimbra, dedicando-a a sua irmã.
Raquel
A D. Cândida Nazaré
Despe o luto da tua soledade
E vem junto de mim, lírio
esquecido
Do orvalho do céu!
Tens nos meus olhos pranto de
piedade,
E se és, mulher! irmã dos que
hão sofrido,
Mulher! sou irmão teu.
Consolos não te dou, que não
existe
Quem de lágrimas suas nunca
enxuto
Possa as de outro enxugar:
Não pôde alívios dar quem vive
triste,
Mas é-me doce a mim ch
orar se escuto
Alguém também chorar.
Botão de rosa murcho à luz da
aurora!
Que pecado equilibra o teu
martírio
Na balança de Deus?
Se é como justo e bom que ele se
adora,
Quem te há mudado a ti, ó rosa,
em uno,
E em uno os lábios teus?
Não enche ele de bálsamos o
cálix
Da flor a mais humilde, e esses
espaços
Não enche ele de luz?
Não veio o Filho seu, lírio dos
vales!
Só por amor de nós pregar os
braços
Nos braços de uma cruz?
Mulher, mulher! quando eu num
cemitério
Levanto o pó dos túmulos
sozinho:
Eis, digo, eis o que eu sou!
Mas, quando penso bem nesse
mistério
Da virtude infeliz: Vai teu
caminho;
Dois mundos Deus criou!...
Deus não dispara a seta
envenenada
À pombinha, que aos ares
despedira,
Com mão traidora e vil;
Imagem sua, Deus não volve ao
nada,
Não aniquila a flor que ao chão
caíra
Lá desse eterno Abril!
Hás-de, cisne, expirando alçar
teu canto;
Hás-de lá quando a lua da
montanha
Te acene o extremo adeus,
Voar, Cândida, ao céu, e ébria
de encanto;
No oceano de amor que as almas
banha,
Unir teu canto aos seus.
Seus delas, mãe e irmã... cinzas
cobertas
Dum só lanço de terra... Oh
desventura!
Oh destino cruel!
Vejo-as ainda ir com as mãos
incertas
Guiando-se uma à outra à
sepultura,
E a mãe: "Raquel!
Raquel!"
Desde então, à janela do
ocidente
Te hão de ver como a bússola em
seu norte
Fita pensando... em quê?
Oh! não n os voes também, pomba
inocente!
É grande a eternidade e é certa
a morte:
Espera, vive e crê!
Por ocasião da morte de sua irmã
Raquel
e, poucos dias depois, de sua
mãe.
in, "Campo de Flores"
in, "Campo de Flores"
João de Deus Ramos nasceu em São
Bartolomeu de Messines (Algarve) no dia 8 de Março de 1830 e faleceu em Lisboa,
no dia 11 de Janeiro de 1896. Era filho de José Pedro Ramos e de D. Isabel
Gertrudes Martins. A sua vida decorre entre os reinados de D. Maria II a D.
Carlos.
Em 1849 entra na Universidade de
Coimbra, na Faculdade de Direito, curso que
acaba apenas em 1859, o que lhe
terá suscitado dizer, que a sua formatura teria durado tanto tempo como a
Guerra de Tróia. Acabado o Curso de Direito em prazo tão dilatado, deixa-se
ficar por Coimbra, no meio estudantil das serenatas e da boémia, tendo-se, no
entando, dedicado ao jornalismo e à advocacia na cidade do Mondego, a que se
seguiram, Beja, Évora e Lisboa.
Questões familiares, fazem-no, em
1862, regressar ao Algarve. O seu espírito rebelde, porém, transvia-o para
Beja, onde permanece durante dois anos, ocupado na redacção de “O Bejense”,
jornal que em 1863, dá à estampa e por sua lavra artigos de crítica contra
António Feliciano de Castilho, defensor do velho Romantismo, já a agonizar,
sendo nesse mesmo ano convidado por Rodrigo de Morais Soares a escrever um
folhetim educativo para o Archivo Real. (1)
João de Deus não seguiu qualquer
escola literária mas adoptou uma estética muito própria, de um lirismo (2) que
o torna o maior Poeta de Portugal, nesse campo. As suas poesias foram reunidas
na colectânea Campo de Flores, publicada em 1893, incluindo-se nesta duas obras
anteriores: Flores do Campo e Folhas Soltas. Dedicou-se à pedagogia, resultando
daí a Cartilha Maternal publicada em 1876 – um
ensino de leitura às crianças que foi muito divulgado – e do qual a Rainha D. Amélia disse: Nos seus
versos aprendi a amar Portugal; na sua Cartilha Maternal aprendi a ler
português e ensinei os meus filhos a ler.
Regressado a S. Bartolomeu de
Messines, é em Silves, em casa de José
António Garcia Blanco que em 1869 que é convencido a disputar a eleição para
deputado à Câmara. É eleito pelo círculo de Silves, facto que o obriga a fixar
residência em Lisboa. A política, porém, não o fascina minimamente. É raro
aparecer na Câmara, onde, no entanto se mantém durante uma legislatura por
consideração aos amigos e seus eleitores.
Admira e frequenta a tertúlia e o
remanso do Café Martinho, ali perto do teatro de D. Maria II.
Do seu casamento com D.
Guilhermina Battaglia, tem cinco filhos, dois rapazes e três raparigas.
É nomeado, e contestado –
acontece com os grandes homens - Comissário Geral do Ensino da Leitura, segundo
o seu método, declarado de interesse nacional – a Cartilha Maternal.
Poeta, por um dom da sua alma
lírica foi jornalista por acaso e pedagogo, por intuição.
Conhecido pelo seu indiferentismo
por escolas literárias, João de Deus foi irredutível na ligação que manteve
com a verdade simples, que cantou com rara
elevação, arvorando como temas fundamentais, Deus, a mulher, a
sobrenaturalidade e aqui e ali o erótico ingénuo, revestido de roupagens
naturais que dão uma inusitada beleza.
A sátira e as fábulas que ele
trabalhou nos seus últimos anos de Coimbra, nunca atingiram, no entanto, o nível inultrapassável do seu lirismo puro e
apaixonado.
Foi um poeta popular e ao mesmo
tempo de um fino cariz cultural.
Em 1893, Teófilo Braga, edita,
toda a obra dispersa no livro: Campo de Flores, que teve uma nova edição em
1896, ainda revista por João de Deus.
No dia 8 de Março de 1895,
estudantes de Lisboa, Coimbra, Porto, Santarém, Braga, Lamego e Portalegre a
que se juntou a Imprensa portuguesa, o povo anónimo e muitas as crianças,
manifestam-se junto a sua casa, na Estrela, em Lisboa.
Era sócio honorário pela Academia
Real das Ciências e pelo Instituto de Coimbra.
No dia 9, daquele mesmo ano
assiste a um sarau no teatro D. Maria II que contou com a assistência do Rei D.
Carlos. No fim saiu da sala sobre as capas dos estudantes.
O seu funeral, cerca de um ano
depois, foi uma manifestação nacional, constituindo a maior consagração pública
que algum dia se fizeram em Portugal a escritores.
Como um marco lírico ficou
profundamente estrelado no céu da poesia portuguesa, o famoso poema,
Enjeitadinha, que o povo antigo sabia de cor:
De que choras
tu, anjinho?
"Tenho
fome e tenho frio!
— E só por
este caminho
Como a ave
que caiu
Ainda implume
do ninho!...
A tua mãe já
não vive?
"Nunca a
vi em minha vida;
Andei sempre assim perdida,
E mãe por
certo não tive!"
— És mais
feliz do que eu,
Que tive mãe
e... morreu!
Sobre a mulher, deixou-nos, do
seu profundo respeito e idolatrado sentir humano, composições que são jóias
raras, com esta, Mal Sabes, que entre outras tem estas duas quadras:
Despedi-me de
ti, os lábios rindo
Mas estalando
o coração, que em suma
Deus me
livrasse a mim por forma alguma,
De te nublar
um dia o gesto lindo!
Que eu sofra,
muito embora: o meu destino
Qual é senão
sofrer a vida inteira?
Causa da tua
lágrima primeira
É que nunca
serei: não te amofino.
Na célebre cançoneta, Amor, João
Deus eleva o seu lirismo tão puro e imaculado, que dir-se- á, estarmos em
presença de um poeta de alma etérea:
Não vês como eu sigo
Teus passos, não vês?
O cão do mendigo
Não é mais amigo
Do dono,
talvez!
Ao pé de uma fonte
No fundo de um vale,
No alto de um monte
De vasto horizonte.
Sem ti estou mal!
João de Deus era um poeta de
cunho cristão.
No poema Pátria, deixa-nos
explícito algo que nos lembra a Parábola do Filho Pródigo, tecendo um ideia
entretecida de sentimentos filiais tão nobres e tão altruístas que devem
merecer de todos aqueles que têm a graça de lerem este formoso e cândido Poeta,
um sentido respeito, pela harmonia e sentido dos versos e pelo seu encadeamento
singularmente belo, que leva todo o homem de sentimentos puros a desejar morrer
onde lhe embalaram o berço, como se naquele punhado de terra estivesse a Pátria
inteira.
Diz, assim, João de Deus:
Como o
pródigo volta ao lar paterno
Desenganado
do que em vão procura,
Eu já
desfalecido nesta lida
De sonhos
sobre sonhos de ventura,
Desejava
dormir o sono eterno
Abrindo junto
ao berço a sepultura!
Fechar em
suma o círculo da vida
No saudoso
ponto de partida!
Chegado,
pois, Senhor, aquele dia
Que se me
apague a luz que me alumia,
Deixai-me
descansar onde repousa
Meu santo pai
e sua terna esposa
- A minha
santa mãe!
Ser-me-á
assim mais leve a fria lousa...
Que a terra
onde se nasce é mãe também!
Este desejo do Poeta, de dormir o
sono da morte junto dos seus progenitores não se cumpriu.
Pela sua postura de cidadão
erguido ao cume mais alto da honra de ter vivido e ter feito da vida uma causa
em prol dos outros, como o atesta, para além do valor da sua obra poética – que
é um ímpar em toda a Literatura portuguesa – a sua obra de pedagogo, traduzida
na Cartilha Maternal, onde muitas gerações de portugueses aprenderam a ler, a
Pátria, fez do seu corpo, património comum, e ao dar-lhe honras de Estado,
fê-lo repousar no Panteão Nacional ao lado de Almeida Garrett e Guerra
Junqueiro, homens, que como ele, se libertaram da lei da morte, no dizer
inspirado de Luís de Camões.
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(1) - Jornal de Agricultura
fundado em 1858, quando o Bacharel em Medicina, que ficou conhecido por Morais
Soares, tomou posse em1852 do cargo de Chefe de Repartição da Agricultura da
Secretaria das Obras Públicas, criada no reinado de D. PedroV. Em Lisboa,
existe uma rua com o seu nome
(2) - O lirismo tem a sua
primeira afirmação nacional na poesia trovadoresca, cujos géneros principais
são: as cantigas de amor assimiláveis à poética provençal, na qual o poeta
exprime uma forte admiração e submissão em relação à mulher amada
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