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segunda-feira, 14 de julho de 2014

Almeida Garrett (1799 - 1854)

Gravura publicada pela Revista 
"Occidente" de 15 de Dezembro de 1878


Adeus!

 Adeus! para sempre adeus!
 Vai-te, oh! vai-te, que nesta hora
 Sinto a justiça dos céus
 Esmagar-me a alma que chora.
 Choro porque não te amei,
 Choro o amor que me tiveste;
 O que eu perco, bem no sei,
 Mas tu... tu nada perdeste;
 Que este mau coração meu
 Nos secretos escaninhos
 Tem venenos tão daninhos
 Que o seu poder só sei eu.

 Oh! vai... para sempre adeus!
 Vai, que há justiça nos céus.
 Sinto gerar na peçonha
 Do ulcerado coração
 Essa víbora medonha
 Que por seu fatal condão
 Há-de rasgá-lo ao nascer:
 Há-de sim, serás vingada,
 E o meu castigo há-de ser
 Ciúme de ver-te amada,
 Remorso de te perder.

 Vai-te, oh! vai-te, longe, embora,
 Que sou eu capaz agora
 De te amar - Ai! se eu te amasse!
 Vê se no árido pragal
 Deste peito se ateasse
 De amor o incêndio fatal!
 Mais negro e feio no inferno
 Não chameia o fogo eterno.
 Que sim? Que antes isso? - Ai, triste!
 Não sabes o que pediste.
 Não te bastou suportar
 O cepo-rei; impaciente
 Tu ousas a deus tentar
 Pedindo-lhe o rei-serpente!

 E cuidas amar-me ainda?
 Enganas-te: é morta, é finda,
 Dissipada é a ilusão.
 Do meigo azul de teus olhos
 Tanta lágrima verteste,
 Tanto esse orvalho celeste
 Derramado o viste em vão
 Nesta seara de abrolhos,
 Que a fonte secou. Agora
 Amarás... sim, hás-de amar,
 Amar deves... Muito embora...
 Oh! mas noutro hás-de sonhar
 Os sonhos de oiro encantados
 Que o mundo chamou amores.

 E eu réprobo... eu se o verei?
 Se em meus olhos encovados
 Der a luz de teus ardores...
 Se com ela cegarei?
 Se o nada dessas mentiras
 Me entrar pelo vão da vida...
 Se, ao ver que feliz deliras,
 Também eu sonhar... Perdida,
 Perdida serás - perdida.

 Oh! vai-te, vai, longe embora!
 Que te lembre sempre e agora
 Que não te amei nunca... ai! não;
 E que pude a sangue-frio,
 Covarde, infame, vilão,
 Gozar-te - mentir sem brio,
 Sem alma, sem dó, sem pejo,
 Cometendo em cada beijo
 Um crime... Ai! triste, não chores,
 Não chores, anjo do céu,
 Que o desonrado sou eu.

 Perdoar-me tu?... Não mereço.
 A imundo cerdo voraz
 Essas pérolas de preço
 Não as deites: é capaz
 De as desprezar na torpeza
 De sua bruta natureza.
 Irada, te há-de admirar,
 Despeitosa, respeitar,
 Mas indulgente... Oh! o perdão
 É perdido no vilão,
 Que de ti há-de zombar.

 Vai, vai... para sempre adeus!
 Para sempre aos olhos meus
 Sumido seja o clarão
 De tua divina estrela.
 Faltam-me olhos e razão
 Para a ver, para entendê-la:
 Alta está no firmamento
 Demais, e demais é bela
 Para o baixo pensamento
 Com que em má hora a fitei;
 Falso e vil o encantamento
 Com que a luz lhe fascinei.
 Que volte a sua beleza
 Do azul do céu à pureza,
 E que a mim me deixe aqui
 Nas trevas em que nasci,
 Trevas negras, densas, feias,
 Como é negro este aleijão
 Donde me vem sangrar às veias,
 Este que foi coração,
 Este que amar-te não sabe
 Porque é só terra - e não cabe
 Nele uma ideia dos céus...
 Oh! vai, vai; deixa-me, adeus!

Almeida Garrett, in 'Folhas Caídas'


A quem diz "adeus" o Poeta?
Se as "Folhas Caídas" nasceram sob a inspiração da Viscondessa da Luz, parece, que é para ela esta despedida depois de se ter esgotado o encanto que fez doidejar o grande romântico, no momento em que sentiu que caía sobre aquele enlace a "justiça do céu" que, é ele que o declara lhe estava esmagando "a alma que chora".

Ao contrário de Alexandre Herculano que fez da sua razão o seu cavalo de batalha contra a Igreja, só admitindo o que esta lhe concedia pela explicação racional das coisas que estavam  - e continuam e estar no patamar do Absoluto - Almeida Garrett, muito embora comungasse do Liberalismo da época, fez perante a Igreja um caminho diferente, não lhe opondo o poder de uma razão sem limites.

Este extenso poema é um rebate de consciência que leva o Poeta a falar do seu mau coração, indo ao ponto de declarar, como o faz na primeira estrofe, que ele, Tem venenos tão daninhos/Que o seu poder só eu sei, provando, assim, que foi um homem que por cima dos seus próprios dramas - que ele mesmo armou a si mesmo - e dos quais, enquanto a lucidez o permitiu se despediu, como faz na segunda estrofe, onde mais uma vez impera a justiça do céu.

 Oh! vai... para sempre adeus!
 Vai, que há justiça nos céus.
 Sinto gerar na peçonha
 Do ulcerado coração
 Essa víbora medonha
 Que por seu fatal condão
 Há-de rasgá-lo ao nascer:
 Há-de sim, serás vingada,
 E o meu castigo há-de ser
 Ciúme de ver-te amada,
 Remorso de te perder. 



A sua vida politica é, um testemunho da sua consciência, exercendo-a no espaço que durou sem se descuidar de a manter viva em todas as discussões que manteve na Câmara dos Deputados - hoje Assembleia da República - como aconteceu em 8 de Fevereiro de 1840,  na discussão da "Resposta ao Discurso da Coroa", em resposta a José Estevão. Era, então, deputado pela Ilha Terceira - de onde embarcou até ao Mundelo - e membro do Partido Setembrista, mostrando aos radicais a necessidade do censo eleitoral, bem como a cooperação devida com a ordem vigente.

Num dado passo, falou deste modo:

(...) Do nada saiu este mundo em que vivemos, da imensidão da Sabedoria eterna a ordem que o formou e o rege. O Fiat da Omnipotência foi a ordem que entrou no caos, que dividiu os elementos, que separou a luz das trevas, o dia da noite, e compôs enfim este belo universo, tão belo na ordem regular para que nos criou a Providencia, como era horroroso e feio antes dessa ordem, como será espantoso e medonho quando a ordem se quebrar, quando retirada a mão de Sabedoria moderadora, voltar a anarquia dos elementos para destruir o mundo. (...)

Lapidar quanto ao pensamento vivo e quanto ao que de mais puro havia em Garrrett, de respeito perante as Leis da Providência é este pedaço de prosa parlamentar, o que prova, que nele, a "justiça do céu" de que fala no seu poema não era de todo, uma imagem poética, mas algo que o transcendia e que ele respeitava.

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